502
Terça-feira,
22 de Junho de 2021
Os meus primeiros fregueses do dia (entre as 5h30m & as seis) constituíram-me fortuna: quatro corvos, nada menos, vieram ao meu pão. Por estar duro, amorteci-o em água-corrente (digo: o pão), só depois o lançando (aliás olimpicamente) ao telhado das garagens que raiam o bosquete. Belíssimas, poderosíssimas, pristiníssimas aves. Não se demoram. São escritoras rápidas do verso de si mesmas. No caso, e por assim dizer, o meu pão serve-lhes de papel.
503
Búteo Zacarias & Tarântula Maria, seres livres, agentes de suas vidas.
Patrulham a existência com inata sapiência.
Congénito instinto os obriga a durar por inteiro.
Não os aflige a pergunta inquietante, a desordem sim.
Na fábrica de sabões, o operariado cumpre o circuito.
A estrutura produtiva precisa do tempo humano.
Em outra unidade, fabrica-se o óleo vegetal para fritura.
A barra sólida chama-se margarina, a manteiga dos pobres.
Campo aberto, casario de tábua, valas para rega.
Passa-se de rapaz a velho num ápice distraído.
Alfaias vibram em prolongamento do gesto humano.
Nenhum deus atrapalha esta criação.
Bibes infantes: rosa, azul, verde, tangerina.
Batas operárias: branco, castanho, cinzento, batata.
Em o deserto, olhar imerso em firmamento.
Dorme-se na tenda, pão & água guardados.
Hidrogénio, hélio, armas feitas sol.
Luz & água elevam a planta, palpitam-na.
No cerne do visível, a poética da cegueira.
Patinhamos na lama, somos os do berlinde cósmico.
Plantar, colher, fabricar, resistir.
Também afinal inatos, nós, em circuito.
Criámos porém explicações divisoras.
O búteo é porém búteo; tarântula, a tarântula.
O senhor Ptolomeu calcula anéis celestes.
O senhor Copérnico jogou berlindes orbitais.
O senhor Kepler disse central a solar fogueira.
O senhor Galileu arrasou a padralhada.
Pondere-se com gravidade o senhor Newton,
A maçã, a água, a luz mesma – atraem-se.
Einstein trabalha em patentes; Kafka, em seguros;
Paredes, em radiografias; Wenceslau, em barcos.
Dos criadores aos destruidores, búteo & tarântula.
Considere-se o carniceiros de porcos, R.W. Pickton.
Tornou anedóticos a polícia & o tribunal canadianos.
Foi o precito predador do Low Track vancouveriano.
Tarântula & búteo alimentam-se sem crime.
E nós? Estudamos Marte & criamos o Low Track.
A tentação solipsista é acutilante.
Não só o sabão – também a chacina é indústria.
Inventou-se o Diabo para haver Bod’Expiatório.
Daí que se Lhe atribua caprinas patas.
E depois deixamos em paz a vizinhança.
E o Espaço-Tempo desdenha-nos, com razão.
Desdenha-nos & desenha-nos – somos os bonecos dEle.
O matemático tenta ler o máximo nos elementos.
O músico dá-no-los a escutar.
O criminoso gatafunha, não sabe ler nem escutar.
Como em um sono protegido, zona de segurança.
Clarões valiosos iluminam episódios.
Esses episódios estavam suspensos no a-Tempo.
Digo: suspensos como os famosos jardins d’onde-não-sei.
O particular integra o universal.
A solidão também, dicunt mihi.
Alegres passeatas com pausas para refresco.
Gente em deliciado pânico religioso.
Tive & mantive um caderno de capas azuis.
Registei sentidos alheios & cintilantes.
Não tive pressa nem retardei prática.
Recordo as segundas-feiras como mais produtivas.
Frequentei a rua onde era a sapataria.
Tinha um toldo amarelo, letras roxas.
O dono era velhíssimo, respirava outro tipo de ar.
A paragem-bus era nessa rua, à saída do colégio.
É permitido dizer nomes?
Se for, lembro-me da Natália & do Fausto.
Convidaram-me para o casamento.
Eu era virgem, ainda o fui mais dois anos.
Não o impressiona a quantidade de medíocres?
Vejo que sim. A mim também, muito.
Tenho alturas em que me incomoda menos.
Não são eles a incomodar-me, é o eu ligar a isso.
Estou em que os pequenos-nadas contam mais.
Quero dizer: mais do que as grandes sonhadorias.
Sabe, os gestos ruidosos, o dar-espectáculo.
A mão-direita publicar a esmola que a esquerda deu.
Vou pelos livros deveras bem escritos.
Eles roubam pão à morte, aborrecem-na.
O Nemésio montado a cavalo pelo Tovim.
O Eça recebendo no consulado o jovem Nobre.
Preocupa-me a impotência.
Entenda-me, p.f.: não a sexual.
Essa ainda é o menos, na minha idade.
Digo a outra, aquela perante o mal-social.
Procedo a este inquérito para não ser eu.
Não ser eu a responder, a expor-me.
Exemplo: Que acho eu da pena-capital?
Exemplo: Por que me dana a ignomínia?
Num dia bom, encho o bandulho & durmo.
Bacalhau com batatas, sesta sem despertador.
Já não sou muito de ir a bailes ou a feiras.
Faço as compras sem alarde nem pompa.
A filha do senhor Botelho fez-me um gorro azul.
Azul, de lã forte, um belo gorro para Dezembro.
A filha do senhor Antunes fez-me canja & pudim.
Eu na altura da filha do senhor Antunes não tinha cozinha.
Como quem faz o rol de mercearias a aviar.
Quem diz mercearias, diz recados, documentos a tratar.
Isso – e voltas a dar, telefonemas a fazer.
Isso – e não depositar muita fé seja no que(m) for.
Gosto de casais casados contando viagens agora antigas.
Não me aborrecem que mostrem mil fotografias.
Os casais infelizes têm poucas fotografias.
Os casais felizes nunca têm menos de mil.
A filha de Alice & Américo tornou-se muito requisitada.
Não era desengraçada – e formou-se médica-pediatra.
Acontece que ela preferia raparigas, a verdade é essa.
Na altura era vergonha, hoje é orgulho, parece mentira.
Coimbra? Foderam a indústria, despromoveram tudo.
Isto sobrevive de hospitais, universidade & serviços.
O comércio é só nos hipergalinheiros.
Algarvizaram o resto, é só souvenirs de cortiça.
Se estou a ser mauzinho, má-língua, ressabiado?
E depois se estiver? A cagar, nunca errei o chão.
“Cala-te aí, boca aberta / Que não sabes o que dizes.
Tens um buraco na cara / Onde cagam as perdizes.”
Trinchar o peru. Pintar a garagem.
Regar o canteiro. Comprar cortinados.
Pesquisar árvore-genealógica familiar. Dormir.
Acordar. Não esperar, ir andando.
Imagens ou instantes mais fulminantes?
Ora deixe cá olear a lingueta ao bestunto.
Aos cinco anos, levou-me ao circo, o Raul.
Quando me tiraram o sinal perigoso da nalga esquerda.
Olhe, mais esta: a Ivone a mostrar-nos as mamas.
Foi na primária, entre a oliveira & a cantina.
Demos cinco tostões cada um, ficar a dever não dava.
Ela ganhou meia-coroa: éramos o Crispim, o Mané, eu, o Beto & o Chicha.
Vejo documentários sobre crimes escabrosos.
Não gosto dos que ficaram por resolver.
Vejo menos desses, frustram-me, amargam-me a boca.
Sim, sou a favor da pena-de-morte, sim.
Acho natural que os anos insulem mais as pessoas.
Não digo todas, há quem rambóie até ao mármore.
Digo pessoas como eu, com quintal, um cão, livros.
E com idade q.b. para saber o que(m) não quer.
Soube do caso do violador em Lisboa?
Vá lá que apanharam o gajo.
Espero que lhe façam a folha na prisão.
Um pau de vassoura pelo cu acima.
Tenho corrido o nosso País mais ou menos.
Sítios que não conheço? Alguns, sim.
Pinhel. Beja. Chaves. Montijo.
A Madeira. E os Açores.
Figuras históricas a valer?
O Churchill. O D. Quixote.
A Madame Curie. O Adamastor.
O Salazar. E o Pinóquio.
Um vizinho maluco.
Duas patas-chocas.
Três como nos film’spornos.
Quatro para uma suecada.
Ir com o Jorge jantar na Tenente Valadim.
Ir com o Rui aos sapatos.
Ir com o Fernando libertar uma gata.
Ir com o Zé tocar & cantar.
Sei de pessoas admiráveis.
São-no deveras – mas ninguém as admira.
Em contrapartida, venera-se o idiota.
O patet’alegre. O lambe-cus.
Recordo-me daquele que morreu no Açude.
Estava à caça (proibida) da lampreia.
Também fui amigo do pai do rapaz da ponte.
Digo: do rapaz que morreu na construção da ponte.
Na extrema-poente da Travessa da Rua Pêro Vaz de Caminha.
Árvore maravilhosa, ali ao dispor das aves.
Ao dispor das aves e ao meu, que sou silv’ornitófilo.
Passo lá sempre que posso, mas é que posso pouco.
Sítios onde tive momentos de alegria?
Em Penalva do Castelo, vi o meu Professor Elias.
Na Quinta do Couto, três dias com o meu Pai.
Na Figueira da Foz, cada Julho, com a minha Mãe.
Sítios felizes, tenho mais alguns que são dizíveis.
No Hotel Avenida, noite de quarta-feira, 11 de Maio de 1994.
Em Casa, noite de quarta-feira, 30 de Setembro de 1981.
Idem, manhã de sábado, 5 de Novembro de 1977.
E de tristeza?
Nunca senti tal coisa.
Nunca mesmo?
Nunca mesmo: sou um venerável patet’alegre.
Todos (mas todos) os outros são de segundo para baixo.
Refere-se a quê? A jogadores da bola? A destinos turísticos?
A versos. O verso de Pessoa.
“Minha pátria é a língua portuguesa.”
Tempo estragado, dissipado, mal-empregue & mal-entregue.
É-me difícil, a mim-agnóstico, imaginar pecado afim deste.
Remorsos? Contam para nada. Revolta? Só desajuda.
Desforra? Pouco alivia. Poetá-lo? Ajuda um bocadito.
No último comboio da noite, Figueira-Coimbra.
Inverno (quando ainda havia invernos a sério).
O postal iluminado da Cidade a partir da ponte-ferroviária.
A pé para (a) Casa via Loreto/Cerveja/Triunfo/Fiaco/Escola.
O rapaz de Viseu que ajudei nos Correios.
A casa que afinal não arrendei na Rua das Árvores, FF.
O campo do Esperança de Lagos em 1976, então pelado.
O rapaz de Aveiro a quem indiquei a Avenida Elísio de Moura.
Na Portagem, a Menina a quem dei gomas.
Em Mafra, a saúde física, a força toda.
No início de 2005, tocando o fundo, quase sem força.
Dura dúzia de anos volvidos, vislumbre luminoso.
E a senhora? Que me diz de Kierkegaard?
Digo-lhe que o nome significa Adro-de-Igreja.
Muito bem. E agora para 100 mil euros: E Miguel Torga?
O Torga não me diz nada. Pagam em cheque ou fazem transferência bancária?
Relacione Felicidade-Conjugal com Sabedoria-Popular.
Pode ser em quadra? Pode sim, faça favor.
“Se queres ter um lar feliz / Podes copiar pelo meu /
Cá em casa manda ela / E nela mando eu.”
Julgo haver mais humanitarismo para com o criminoso.
Sei que a vítima é depressa arredada do radar.
Há crimes para que não deveria existir prescrição.
O violador de crianças merece a guilhotina.
A senhora não crê na reintegração social do perpetrador?
Depende.
Depende de quê?
Não: depende de quem.
Não temos de concordar sobre tudo com todos.
Estamos todos condenados à morte, todos.
Fomos todos condenados à vida, todos.
Ninguém foi condenado à concordância com todos.
Uns (muitos) no álcool.
Outros (tantos) nos opiáceos.
Mais ainda nas religiões.
Fica cá, porém, exactamente ninguém.
Não visites quem te não convidaria.
Não te deixes convidar por quem não visitarias.
Percebeste, Tarântula Maria?
Percebeste, Búteo Zacarias?
504
Desconhecer a Lei não pode ser.
Ou antes: não se pode invocar o desconhecimento da Lei.
Pode desconhecer-se a Lei, mas não safar-se a tê-la desrespeitado.
Ou se calhar até pode – depende do desrespeitador.
Algumas coisas são melhoradas, é verdade.
Outras seguem sendo mais-do-mesmo, verdade também.
Diariamente, em Portugal como fora deste paraíso, a realidade é feita gato-sapato aos & pelos diversos níveis de poder. Não me refiro apenas à notícia – refiro-me por igual ao ângulo escolhido através do qual nos chega ela. Por palavras mais brutas mas mais sérias também: há muita maneira de ver a cona à carriça.
Em certa época, queimei anos nesse ofício inglório que, em teoria, consiste em apurar a verdade factual para comunicá-la o mais objectiva & imparcialmente possível.
O que seja a verdade, não sei.
(Mas invocar desconhecimento não serve.)
O que seja facto, depende.
(Mas invocar dependência dá mau aspecto & pior fama.)
Objectividade & imparcialidade são quimeras tão sérias por fora quão putas por dentro.
Não me arrependo de ter oficiado plumitivamente. Contas feitas, são anos que arderam – como ardem todos, seja-se isto ou desista-se de ser aquilo.
De vez em quando, episódios dessa era retomam de mim algum tempo-de-antena. Há de tudo: coisas bizarras, cenas cómicas, facas & alguidares, comum estupidez, filhodaputice espontânea e/ou organizada, honestidade tão mais áurea quão menos em moda. Fartei-me. Não era a profissão que estava a mais – era eu que estava a menos: e a menos cada vez mais.
Lembrei-me de depor isto hoje por me não faltar papel – e também para estrear este marcador de um euro, de cuja existência factual, objectiva & verdadeverdadeirinha aproveito para V. dar notícia.
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