05/07/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (14)

14

Pombal, manhã de 4 de Julho de 2009

No saco, o livro de José Carlos González, Idos e Calendas (Editorial Caminho, Lisboa, 1986).
Na pele, a gratidão pela frescura tão mansa da manhã nova.
Apetece, a releitura dos versos de JCG.
É livro dos anos 80/XX.
São versos que contam, que nasceram bem e foram bem fixados de costas ao papel.
Foi no dia 18 de Abril de 1989 que este livro entrou na minha vida.
A nota, a lápis de aquisição, precisa que o acontecimento se deu na Casa Rádio, Figueira da Foz.
Vinte anos e uns pós bem contados.
Tenho a vida pós-infância razoavelmente cartografada em chegada de livros.
Agrada-me revisitar o Tempo, um tanto ilusoriamente embora, pela mão do lápis comprador.
Cada pessoa brinca com os brinquedos que pôde construir e soube guardar.
Há as que brincam com papéis do Registo Predial.
Há as que brincam carpinteirando miniaturas.
Há as que brincam com couves na horta.
Há as que brincam a decorar capitais de países.
Há as que brincam acumulando divórcios.
Há as que brincam com galhardetes desportivos na garagem.
Há as que brincam com vidas de revistas de cabeleireiro.
Há as que brincam às opiniões políticas como na têvê.
Há as que brincam a ir à pata a Fátima.
Há as que brincam com indivíduos do mesmo sexo sem ser por ambientalismo.
Há as que brincam a falar mal.
Há as que brincam a escrever mais mal.
Há as que brincam com duas pedras na mão.
Há as que brincam com cinco pedrinhas nas mãos.
Há as que brincam aos favores autárquicos.
Há as que brincam às lareiras.
Há as que brincam ao ar condicionado.
Há as que brincam com tendas de campismo.
Há as que brincam com tendas de feira.
Há as que brincam à pesca da perca na barragem.
Há as que brincam a comer enchidos.
Há as que brincam à ecologia e à homossexualidade ao mesmo tempo.
Há as que brincam à flor do absinto.
Há as que brincam com camisas de contrafacção.
Há as que brincam a saber as fodas de Hollywood.
Há as que brincam a saber as bodas de Hollywood.
Há as que brincam a saber as sodas de Hollywood.
Há as que brincam a saber as rodas de Hollywood.
Há as que brincam a saber as modas de Hollywood.
Há as que brincam a saber as podas de Hollywood.
Há as que brincam a dizer sempre que sim ao Papa.
Há as que brincam a dizer bem até do Salazar.
Há as que brincam às colchas postas à janela.
Há as que brincam às procissões ante janelas acolchoadas.
Há as que brincam a mostrar os genitais.
Há as que brincam a tossir como os tuberculosos.
Há as que brincam a pôr alcunhas aos vizinhos.
Há as que brincam a colar estrelas de cartolina azul nas vidraças.
Há as que brincam a pôr os filhos na universidade.
Há as que brincam a atender o telemóvel no escuro do cinema.
Há as que brincam a comer francesinhas em Espinho.
Há as que brincam a arrotar a fritos nas passadeiras.
Há as que brincam a indicar ruas manhosas aos turistas.
Há as que brincam a beber café como o preto-da-Guiné.
Há as que brincam a saber todas as Grandes Datas dos Grandes Mortos.
Há as que brincam coleccionando catálogos, cardápios, colecções.
Há as que brincam sempre com o mesmo trocadilho.
Há as que brincam a falar do Tempo sem saber que dia é hoje.
Há as que brincam a fazer filhos para a estatística.
Há as que brincam a fazer estatísticas para o filho.
Há as que brincam a tirar cursos a quem os tinha.
Há as que brincam aos poemas sobre a Primavera.
Há as que brincam às abóboras no telhado.
Há as que brincam a recitar os bispos todos de Viseu.
Há as que brincam a morrer toda a vida.
Há as que brincam a fotografar os domingos de olhos fechados.
Há as que brincam a dizer coisas dos Uriah Heep.
Há as que brincam guardando ossos de animais em ex-baldes de isolante aquoso.
Há as que brincam a dar com os cornos no chão.
Há as que brincam a chamar bêbado ao Edgar Allan Poe.
Há as que brincam às casinhas mas nunca aos botões.
Há as que brincam a envernizar as unhas das patas.
Há as que brincam a boiar na preia-mar.
Há as que brincam sugando pastilhas de hortelã-pimenta como no tempo dos Beatles.
Há as que brincam com o nónio em segredo.
Há as que brincam a largar bufas no metro.
Há as que brincam a distinguir o Nemésio do Onésimo.
Há as que brincam a distinguir um grilo de um grelo.
Há as que brincam à demência com decência.
Há as que brincam a assim-não-há-condições.
Há as que brincam a fazer o Canal do Panamá de-cá-para-lá-de-lá-para-cá.
Há as que brincam a recitar Soares dos Passos.
Há as que brincam a excitar suores dos pés.
Há as que brincam a tirar burriés de onde os burriés estavam.
Há as que brincam a sangrar quintas-de-lágrimas.
Há as que brincam a esmaltar a verde as varizes.
Há as que brincam a quantificar crepúsculos tipo postal-da-praia.
Há as que brincam a desescamar a micose com a unha do mendinho.
Há as que brincam a guardar a faca no alguidar.
Há as que brincam a refractar isotermicamente coisas achadas na rua.
Há as que brincam a contar uma e outra vezes os pombos do Rossio da vila.
Há as que brincam a dizer a toda a gente que é folha de plátano aquilo na bandeira do Canadá.
Há as que brincam a saber os nomes completos dos cidadãos belgas com cancro neste momento.
Há as que brincam aos reis dos frangos.
Há as que brincam a andar como se foram esquerdos ambos os pés.
Há as que brincam a comer pastéis-de-Tentúgal longe de Tentúgal, por exemplo em Setúbal.
Há as que brincam a ligar arquipélagos com marcador vermelho.
Há as que brincam aos germes como o Howard Hughes.
Há as que brincam a cuspir notas de pífaros de barro ocre.
Há as que brincam a dizer mal do chefe dos Correios.
Há as que brincam em profundidade com as pessoas superficiais.
Há as que brincam ao Homem-Aranha quando estão com a mosca.
Há as que brincam ao braque.
Há as que brincam ao Thilo Krassman, ao Mike Sergeant e ao Shegundo Galarza.
Há as que brincam a nivelar muros sobre que os pássaros caguem a direito.
Há as que brincam aos incêndios voluntários com fósforos municipais.
Há as que brincam aos pelourinhos nas terças-feiras da aposentação.
Há as que brincam a encortiçar o bandulho com cerejas azedas.
Há as que brincam a alourar a pílula.
Há as que brincam a adoçar a cebola.
Há as que brincam coçando o escroto.
Há as que brincam caçando o escrito.
Há as que brincam a aguar o dente.
Há as que brincam com aguardente.
Há as que brincam com cartas de gente que já morreu a gente que já morreu.
Há as que brincam a converter músicas ternárias em números binários.
Há as que brincam a perverter testemunhas-de-Jeová.
Há as que brincam a roer unhas-de-Jeová.
Há as que brincam a reverter a velhice inicial em final infância.
Há as que brincam com fogo real a alvo republicano.
Há as que brincam aos festivais da canção durante o banho a preto-e-branco.
Há as que brincam ao banho a cores em silêncio.
Há as que brincam ao Carlos Alberto Moniz no tempo da Maria do Amparo.
Há as que brincam outoniçamente sem adiantar razões para tanto inverno antecipado.
Há as que brincam aos surdos gesticulando relatos da bola.
Há as que brincam às falas mais célebres de filmes de culto.
Há as que brincam aos falos mais céleres dos filmes do oculto.
Há as que brincam a telefonar óbitos falsos às quatro da manhã verdadeiras a desconhecidos da lista de Portalegre.
Há as que brincam a rechear listas telefónicas com geleia de rábano.
Há as que brincam 17 minutos de cada vez mas só em anos bissextos.
Há as que brincam às policlínicas com Paulas cínicas.
Há as que brincam com a incontinência urinária própria e/ou alheia.
Há as que brincam em Mirandela a dizer que a mulher do próximo é a alheia de Mirandela.
Há as que brincam com decassílabos quando nada o fazia prever.
Há as que brincam a O Alcaide de Faria Volta a Atascar.
Há as que brincam a tintinportintinar fichas técnicas de discos de vinil.
Há as que brincam a ser inconvenientes em velórios.
Há as que brincam à simulação de casos.
Há as que brincam à emulação de casas.
Há as que brincam à quadrilateração do Tempo em relógios redondos.
Há as que brincam a degolar bocejos com grande aparato pantomímico.
Há as que brincam com fantasias, umas de papel, outras irredimíveis.
Há as que brincam exclusivamente com a realidade, mas só da maneira mais previsível.
Há as que brincam às amendoeiras-em-flor com farnéis à base de arroz-de-tomate e bolos-de-bacalhau.
Há as que brincam aos métodos de afogamento pós-confessional.
Há as que brincam aos avatares sicofantas.


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Canzoada Assaltante