14/07/2009

Rumo aos Arquivos Municipais de Londres, Covilhã, New York e Vila Real de Trás-os-Montes

© Alfred Stieglitz

Winter on Fifth Avenue

New York, 1893



Casa, Souto, 12-14 de Julho de 2009


“Ou a nossa vida agora é tudo o que já foi escrito? … Julgámos que vivemos, que somos reais, e somos só a projecção, a sombra das coisas já escritas.”

Leonardo Sciascia, Cândido (1977)


I

Os mortos passam muito tempo vivos.

Costumo surpreendê-los em imagens movediças como as areias das histórias de aventuras.

Em Portugal, mal dormem sob a pátina de geada.

Em outros países, estão na neve, parecem abetos.

Os mortos fomentam o Outono com uma naturalidade invejável.

Todos vivem enquanto há vivos deles.

Depois, tornam-se almanaques perdidos nos arquivos municipais.

Tornam-se arquivos-mortos, tornam-se naturezas-mortas em papel.

Os mortos passam muito tempo

vivo.

Tenho andado de volta deles porque gosto de véus, do além da cortina.

Lá fora dos mortos, há sempre um quintal, um limoeiro estóico que enferruja, uma estrada de comarca por onde passam o pitrolino, o padeiro, o professor primário, as mulheres sempre de preto sempre de preto, parece que já nasceram assim, de preto para sempre.

Os mortos portugueses lavam-se a partir do mármore do peito.

Usam flores chilras na cabeça.

Entre a pastelaria e a papelaria da Heróis do Ultramar, costuma a agência funerária colar as necrologias.

Muita gente pára para saber, consultar os rostos doravante cromos de colecção.

As últimas mulheres de nome Guilhermina aparecem fotografadas e com a dupla data definitiva.

Os rostos delas são comentados em vida.

Nunca encontrei nos livros um general que valesse um calcanhar destes mortos portugueses que vemos passar vivos pela província da nossa vida o tempo todo.

Quando digo um general, digo um herói, um descobridor, um apaixonado, um agente pouco secreto.

Os mortos de, por exemplo, New York não são como os nossos porque falam outra língua toda a vida e porque não comem melancia no Verão como os nossos.

Digo isto assim porque pelos nossos tenho um respeito muito particular, pelos de New York é mais geral, embora seja respeito na mesma.

Entre os portos de Liverpool e Ponta Delgada as mercadorias e as pessoas transitam como pela vida, como no cartório de Valongo, como no entreposto de Alcanena, como nos salões de cabeleireiro de Tóquio.

A vida é uma realidade flagrante do dia-a-dia, mesmo no dia 18 de Agosto de 1940, entre o chão do Sul de Inglaterra e nove mil metros de altitude, mesmo com 754 caças da Luftwaffe contra 630 da RAF, consagrados todos ao Deus do Fogo, como no final da tarde de 7 de Setembro do mesmo ano, sobre as colinas de Kent e as Docas de Londres, chilros mármores voadores.

Os nossos mortos da Heróis do Ultramar integraram talvez a realidade estratégica das refinarias da Zona Leste da capital inglesa, mas nunca o souberam, Dona Guilhermina.

O testamento vital, a legislação portuguesa e a deontologia médica de vez em quando saltam para os jornais, mas depois tudo, como tudo, passa.

Por mim, toco o véu, sinto-lhe a força lúcida, uma manhã estive em Vila Real de Trás-os-Montes a pensar em véus, ou Vénus, em vivos que passavam a caminho de seus mortos, é curioso mas não recordo o mês, costumo lembrar-me do quando, o quê, o onde, o quem, mas o porquê nem tanto.

Os nomes em xisto, a nacionalidade deitada ao comprido, os arrozais que dão cegonhas e verdes que fazem bem aos vivos em trânsito, toco os panos e as sombras e os nomes e as datas.

Quantos aviadores de cima para baixo, quantos civis de baixo para baixo na Batalha de Inglaterra?

Existência terrena sempre, em a vida e em a morte, chã, civil, intramarina.

Mas é claro que viver e morrer são as duas forças aéreas, os dois exércitos, a comum batalha.

Eu agora comando-me esta exaltação, normalmente música, quase sempre vento.

II

Às vezes faz-se tarde e somos noite com o corpo todo.

III

Outras vezes, não.

Não é difícil sempre.

Nem sempre somos nunca.

Estamos vivos, temos mais nomes no nome, entre galerias e portos edulcoramos a incomunicabilidade aliás irrelevante da nossa vida, das nossas vidas, está decerto certo que assim seja.

Além, o branco-espelho de uma igreja, branca na colina verde que sobe a castanho de montanha, ao fundo, onde cavalos e onde o pastor se perfuma de queijo e de sémen, árida é tanta solidão a caminho das fábricas da Covilhã, perdido o coração por terras de Espanha, quase.

Outras vezes, sim: uma lua vermelha sobe os nossos mortos, estamos no campo de batalha, o cornetim parece cego, os galos da aurora atiram bandeiras acústicas, o rodado das canhoneiras sulca lamas como versos de terra, onde os mortos relevantes da nossa vida dormem o corpo todo.

IV

Ganhar a vida: eis algo que os mortos entendem

quando vivos.

Não tem muito que saber, ganhar a vida: galerias de pintura estendem muros educados na imaginação dos burguesinhos de garagem, estendais de roupa papoilam azuis verdes vermelhos brancos pelas pautas dos terceiros-andares, há sempre qualquer coisa de aldeia nos mortos mais próximos da afeição dos vivos, das terras de Espanha, das pátinas de xisto.

E aqui perto, o céu da RAF levanta-se cedo para a madrugada da Luftwaffe, em Vila Real a senhora Guilhermina local vai cevar o porco e mandar calar o galo, nada disto é propriamente comunicável ou relevante, mas eis algo que os

mortos entendem,

mais que nós,

vivos.

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Canzoada Assaltante