"Tenho meio século menos cinco anos."
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Pombal, tarde e entardenoitecer de 10 de Julho de 2009
O que passa por mim deixa marcas que não são de água
e um dia há-de poder ler-se o que ficou.
Assim escreve João Camilo em O Preto e o Branco, 2, poema quinto de Na Pista,
Entre as Linhas (INCM, Dezembro de 1982).
Está certo.
Estará, terá estado, certo para ele – como para muitos de nós, que não sei quantos somos.
Há muito trabalho à espera, fora do corpo.
A estratégia é manter vivo o corpo, embarcá-lo nas naus do trabalho, velejar com a brandura possível no quotidiano.
Deveria talvez ter trazido o casaco.
Arrefeceu, não é Julho como os julhos d'antigamente.
Esta manhã, conversei com brevidade sobre Portugal, este rincão que não ladra nem morde.
O mundo continua ali ao virar da esquina.
Noto movimentos de carrinhas com géneros frutícolas, especiarias embaladas em plástico, valores e documentos judiciais, carangueja a azulibranco um carro da polícia, meio bando de pombas debulha um pão à bicada entre uma bicicleta e uma criança de cabelo muito-amarelo-quase-branco, o outro meio soslaia de pés agrafados a um beiral da chuva, um frufrú de saias de senhoras enganadas no século e no milénio, um odor a água fria por toda a raia do crepúsculo.
Tenho meio século menos cinco anos. A maior parte do meu tempo, cumpri-a com a atenção posta no detalhe irrelevante - quase todo o detalhe, quase toda a irrelevância: 45 anos disto.
O mesmo, por outras palavras (mas as mesmas, afinal):
a árvore por assim dizer pessoa vegetativa,
o rio mais de corredor tempo feito que de água corrente,
o apeadeiro ferroviário entre incertas partida e chegada a que terá baixado parte substancial do meu coração,
o animal único de todos os bichos que tive-tenho-terei a vida toda,
o amor único a esse único animal múltiplo,
os cidadãos cenográficos que fazem viver o filme da atenção do meu olhar
(ou do olhar a que pertenço por escrito),
as cidades mentais e as aldeias físicas e os lugarejos mentais e as metrópoles físicas,
os cálices de mau porto emborcados em jejum nas manhãs muito enxovalhadas durante as que só a amargura me parecia limpa,
as enumerações como esta – través as que tentei-tento-tentarei abarcar o inabarcável,
coruscações de louça em salas lunecidas e mais pretéritas até do que a memória mais esquecida, o tal coração do apeadeiro outras vezes cenografado como casarão senhorial debandado de frufrús e de outros fantasmas, a textura têxtil de certas flores silvestres para sempre e para sempre indomesticáveis,
a música madeira-osso-pedra das mãos do cavalo calçado na calçada londrina,
a fulguração (marmórea até) dos nomes-datas (muitos nomes, muitas datas),
a percepção sempre linguajável e linguajada sempre,
algumas ocasiões o Amor maiúsculo como uma vinda do vento ao rosto,
num sítio com mar esse vento e essa vinda e essa vida maiúscula,
a ciência/a paciência/a consciência da Morte também maiúscula toda ainda que minúsculo todo o seu recipiente individual,
a autoria do pão de cada dia,
um determinado campo agrícola num ano só de novembros,
as muitas águas que pude contar mas não conter
(entre chuvas e olhos),
a posse de mais retratos alheios que de moedas próprias,
o ter-sido fundamental do Eu-meu-Tempo,
o carácter cósmico da vida celular,
o paradeiro também cósmico dos idos brinquedos perdidos da ida perdida infância,
a nudez gloriosa da terra,
a modéstia imperial do céu,
o verso da água,
a exaltação astral do fogo,
os números com que a humanidade tem logrado lograr-se quanto à inumerabilidade dos objectos de atenção,
as sardas de um rosto coroado de ruivo,
a consciência-vídeo de uma mulher num quarto à espera mas não de ti nem de mim,
clarões de cinema-mente a pretibranco com riscos rápidos de cinza,
a arrumadora-cine de Hopper,
os (giras)sóis de Vincent segundo Bataille,
famílias novas no bairro chegando de carroça atulhada de móveis pobres,
o sol muito-amarelo-quase-branco da manhã dessa chegada,
a companhia das palavras como um circo incansável,
as bandeiras-múndi em galeria policromática como as maravilhas do fundo do mar,
a nação dos peixes,
as águas continentais,
a quimera das neves eternas,
Jack London sobrevivendo até aos 90 anos com direito a cabana e a lobos mansos,
Thor Heyerdahl navegando ao Mar-Tempo da História-Possível,
a morte recente do Rendilho Três-Dedos (54 anos) telefonada pelo meu irmão Fernando (54 quase 5 anos),
o dia de ontem quase todo dedicado à figura e à obra de Leni Riefenstahl,
como a de uma baba a segregação verbosa da minha vida passiactiva,
a sassaricação estandartística dos idiomas estrangeiros
(também belos mas menos, ou de outros modos não alcançáveis pelo que nasci),
as tremendas rosas vaginais que as mulheres são a parir,
a ocarina da voz das crianças,
a deflagração ossobucal do limão no alto-pimenta do sabor,
a indestrutibilidade de certos versos de uma beleza dura mais que a do diamante,
a LuzazuL da Riefenstahl,
lembro-me tão bem do Três-Dedos na minha infância toda tida,
e como não chamar "cuneiforme" à escrita das gaivotas deixada pelos areais?,
amador sou-serei-sempre-fui das mais irrelevâncias minúcias,
profissional a tempo inteiro da desimportância,
da anticarreira,
do futuro mesmo.
Até à meia-noite, tempo ainda para chamejar mais faúlhas com a atenção.
Cores vermelha, preta, azul, verde.
Ilimite da contagem, não do contador.
Cabeça sideral, armilar.
Coração tudo idem.
Fantasia e pão.
Ervas de chá e ervas de chão.
O cedro descomunal da Escola Secundária.
Vulcanismo e cartografia.
Podografia e municipalismo.
Criadas-de-servir e polícias-de-giro: uma dialéctica.
Sextas à noite (1981) e bosquejos de historiografia portuguesa por António Sérgio e por Joel Serrão.
E os meus brinquedos, o meu tesouro titular:
o Caso Profumo, o Dossier Odessa, o Arquivo de Alexandria, a Operação Barbarrossa, o Código Enigma, o Clube Panamá, o Almanach Bertrand, o Almanaque Borda d'Água, o Tesouro das Aldeias, o Segredo das Sombras, a Caverna Platão, a Insígnia Amarela, o Item Noruega, o Retábulo da Manchúria, o Ícone Cego, o Quadro Stevens-Born-Wallace, o Parnaso Manchego, o Pátio das Cantigas, o Leão da Costa, a Estrela do Castelo, o Véu Maugham, a Enfermaria Munthe, o Modelo Prussiano, o Sarcófago Futuro, o Expresso Árctico, o Canal das Sedas, o Mapa Lírico, a Carta Magenta, o Rubi Alvo, o Kit de Areia, o Campeão das Províncias, o Diário do Governo, a Casa Única, a Trilogia de Ardenas, o Forte Knox, o Catálogo Genebra, a Flor do Absinto, a Hora Toulouse-Lautrec, o Circo de Roma, o Obelisco Khamar, o Tigre da Malásia, o Episcópio do Magrebe, a Frente Polisário, o Círculo Vermelho, o Projecto Diamantino, a Transparência Elgar, a Compra Knorr, a Arca da Avó, o Macaco Copta, a Visão Aramaica, a Gaivota Cuneiforme, a Vista Assíria, a Colecção Burgomestre, o Índice Grego, o Manual Breve, o Rosário da Sãozinha, a Torre Woolf, o Fim Montana, o Index Notre-Dame, o Plebiscito Romano-Torres, o Diaporama Regicida, a Imagem Vernácula, o Hotel Bragança, o Pedinte Furioso, a Tábua Rasa, a Rosa do Nome, o Cardápio Leicester, a Gramática de Clarke, o Instituto Posológico, o Arco Poseidon, a Montra de Sirius, a Mina de Salomão, o Amor Maiúsculo, a Bíblia dos Cozinheiros, o Flipchart dos Genoveses, o Portugal dos Pequeninos, a Quinta da Machadinha, a Óptica Lourenço, o Salão Brazil, o Café Paraíso, o Cinema Paris, a Crestomatia Arcaica, o Breviário do Taumaturgo, a Gnose do Hermeneuta, o Estudo em Escarlate, o Fantasma dos Baskerville, a Catedral da Chuva, a Guerra Relâmpago, o Alcorão dos Carpinteiros, a Tora dos Onzeneiros, a Cerca Trânsfuga, o Império do Sal, o Corvo da Ilha, a Execução Sumária, a Beleza Negra, a Puridade do Escrivão, o Anel Joyce-Proust, o Mago de Gales, a Helena de Setúbal, a Graça de Coselhas, o Álibi de Mourato, a Raça Nuba-Semita, a Ementa Nagasaki, o Principado Telémaco, o Diário de Ernesto, o Acto Banal, a Dupla Morgan-Carson, a Recoleta de Madagáscar, o Esgrunho de Mogadíscio, o Mandarim das Dúzias, o Motel Verdun, o Crime Expiatório, o Juiz Bode, a Licença Bond, o Protocolo Harum, a Lei B de Runner, a Pélvis de Costello, o Tendão Van Basten, o Amigo do Povo, o Correio de Salavisa, o Pacto de Berna, o Bando dos Quatro, a Efígie Maluca, o Pórtico de Portalegre, o Questionário Quintela, o Castelo de Rilke, o Monastério dos Albinos, a Pensão Rosa, o Cabeleireiro Ivone, o Éter Goebbels, a Data Westminster, o Ministério Marriott, o Ficheiro Anil, o Dito e Feito, o Templário de Beja, a Nau dos Corvos, a Corneta do Diabo, o Jugo do Senhor, o Pomo de Eva, o Maná do Céu, a Maluquinha de Arreios, o Glossário Pax-Tecum, o Anexo de Piaget, o Folheto Lótus, o Documento Terminal, o Relatório de Brodie, a Cassete da Aninhas, o Cravo de Ferro, o Estigma do Êxtase, o Agente Laranja, o Bife de Mármore, o Carapau de Prata, a Senhora das Limpezas, o Écrã de Suez, a Pista Lindsay, o Voluntário de Alcarraques, o Modelo Continental, o Saco de Orelhas, a Lex O'Neill, o Problema Calvino, a Didáctica de Gusmão, o Infante de Legos, a Estrutura Funcional, o Processo Histórico, o Dilema Zamora, a Arte Robótica, o Brandy Mosca, a Camisa Rosa-Negra, a Cibernética Para-Todos, o Porto Sandeman, a Casa das Colheres, a Colina Eólica, o Armazém Leonino, a Banda Gástrica, a Placa dos Dentes, o Metro-e-Meio, a Banha Tokalon, a Regra Filipina, o Recurso Uterino, a Enciclopédia Hirohito, o Miasma Possidónio, o Elemento Brel, o Programa Carioca, a Perspectiva Zé-Eduardo, o Magazine Adalberto, o Facto Alhado, o Cômputo Geral, a Vila-Diogo, a Face Rosicler, o Clérigo do Mal, o Folhetim Eça, o Verdugo Arrependido, a Hora São, o Voo do Jasmim, a Ordem Zero, a Classe Normanda, o Oriente de Faro, o Eco de Pombal, a Formação Quadrúpeta, a Equipa Nua, a Acção Nacional, o Mastim Dourado, a Informação Dúbia, o Danúbio Azul, a Magna Tarte, a Besta Suave, a Situação Limite, o Estágio Carambola, o Corpo ao Manifesto, o Almocreve das Petas, o Bufarinheiro Slade, o Centro Católico, a Comarca de Arganil, o Evangelho de Vil-de-Matos, a Presença do Chiado, o Basicamente-É-Assim, o Módulo Belga, a Vez Derradeira, a Opção Cacho-de-Uvas, o E-Learning de Vidro, o Dínamo de Kiev, a Gravação do Bagarroz, o Pleno Inverno, a Maneira Certa, a Direcção Assistida, o Feto Alaminuta, o Irmão do Maio, o Pé-de-Feijão, a Convenção de Sevilha, a Azinhaga de Gravilha, o Canal Soez, o Tango do Bandido, a Ópera do Malandro, a Idade do Jazz-band, o Auto do Colorau, a Farsa de Inês, a Osga de Pedro, a Súmula de Sancho, o Mistério Cervantes, a Agatha em Telhadezinco, o Parteiro de Neruda, o Reverso da Medalha, a Oportunidade Pedida, o Sistema Longjohn, o Ábaco Dióniso, a Tróia-R-Us, a Tramóia do Morgado, a Lei Ão-da-Selva, o Esplendor da Nataliúde, o Logotipo Qualquer, o Negrito Itálico, o Rómulo de El-Alamein e o Amanhã-Há-Mais.
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