24/07/2009

Rosário Breve nº 113 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt

Sonho de uma Manhã de Verão

Manhã muito cedo. Primeira fímbria de luz azul-cinza. Clarim do galo. Chilreio vegetal de passaritos. Rumor de brisa nas oliveiras, no pessegueiro do pátio. Do chiqueiro dos bacorinhos, o aroma são da cama de estrume e lavagens. Despertamos. A rádio passa Fausto Bordalo Dias. Bons-dias. O locutor diz um poema popular: “Ó penas, não venhais tantas, / Vinde mais poucas e poucas: / Vinde mais bem repartidas, / Dai lugar umas às outras.”

Levantamo-nos. Ao lume, café feito de fresco. Fatias largas de pão de centeio. Manteiga, marmelada. Uma tira de toucinho encarquilhada na sertã. Um pepino crucificado em sal. Uma maçã poderosa como um reactor de açúcar. Hoje não há Lopes da Mota nem Freeport. Ajudamos o padeiro a carregar de lenha o forno artesanal. Hoje não há Dias Loureiro nem Arlindo de Carvalho. O peixeiro buzina sardinha a estalar de prata viva. Compramos um quarteirão dela. Nada de Oliveira e Costa, nada de fazer o 9º ano com 373 negativas. As nossas mulheres riem-se no quintal, algum disparate nosso as faz rir enquanto encestam o pimento, a alface, o tomate, a cebola. Não, hoje nada de siglas, PGR, PM, PR, PSP, GNR, PJ, ME, OA. Nada de Marinhos, de Bibis, de Linos, de pessoas que ficam cegas por terem ido ao hospital. Já o carvão arrebita rubis no meio bidão deitado. Soltamos o cão da corrente, deixamo-lo ir marcar de ureia tudo quanto é couve e poste. Nada de Sócrates com cheque para o dentista, nada de brasucas de terceiro escalão para o Benfica, nada de histerias farmacêutico-grip’A, nada de donas-Brancas por tudo quanto é lugarejo, nada de senhoras-de-fátima fosforescentes em tabliers forrados de pêlo sintético. Abre-se um clarete levemente agulhado de moscatel, serra-se a boa broa, lança-se os dados de uma mão-cheia de azeitona retalhada. Nada de sangue homossexual nem de sangria hetero, zero de risco ao meio do mais-que-Deus-ubíquo Dr. Francisco George, nada de volta do PCP à clandestinidade por ordem do Bokassa da Madeira. Alegria sem Alegre. “Quem a mim me ouvir cantar / Cuidará que estou alegre: / Tenho o coração mais negro / Que a tinta com que se escreve.


Nota: a excelente imagem do "Bokassa da Madeira" foi colhida n'A Esquerda da Vírgula, com a devida vénia.

1 comentário:

António disse...

Texto fabuloso. A forma de vida sustentada e alheada do rebuliço diário parido pela globalização será com certeza o futuro de muita gente, a começar por aqueles que por herança e/ou inteligência têm raízes na terra que é terra.
Por cá, também ainda vou tendo quem retalhe a azeitona colhida no quintal, faça uma boa sopa com carne de porco, broa e tinto maduro. Se isto pega moda, as fast food estão em risco...eh eh eh
Há muito que não via uma foto do Bokassa da Madeira tão bem tirada, o da R. Centro Africana, onde estiver, estará decerto agradávelmente satisfeito por ver o seu legado ter sucessor...

Canzoada Assaltante