1
A senhora da tabacaria está sentada num banquinho à frente do balcão. O vento agita o estendal de revistas, cachecóis desportivos, postais, jornais e camisolas. Quando chove, a senhora da tabacaria levanta-se do banquinho e recobre o mundo de plásticos. É uma tabacaria de vão de escada. A escada sobe para um gabinete de raios-X e para um escritório de advogado. O vento também entra e também sobe.
2
Os ossos da senhora da tabacaria não precisam de subir ao gabinete de raios-X para que os atravessem o vento e a luz. Se fossem de madeira, os ossos da senhora da tabacaria suportariam uma cabana na neve. E à porta da cabana, num banquinho, a alma da senhora da tabacaria haveria de continuar vigiando o mundo como desde sempre.
3
O mundo visto da tabacaria não vem nas revistas que ela vende. A igreja velha vem nos postais. Vista de lado, a câmara municipal apresenta uma carranca de democracia austera. A loja de música parece-se, na memória, com os suspensórios do falecido senhor que a fundou. A esplanada do café, em dias de sol, formiga de nórdicos ociosos a quem a senhora da tabacaria vende postais e oferece amabilidade.
4
Vistas do céu, a tabacaria e a senhora dela pulsam de cor: só os jornais a pretibranco desmentem a euforia arcoirisdecente das revistas, os azulejos de papel que os postais nasceram para ser e a ondulação dos cachecóis benfica-sporting-porto-académica.
5
A senhora da tabacaria, olhando a praça a partir do seu banquinho cósmico, sabe que o tempo é um rio e que todos são, ou somos, náufragos. O rapaz da Higiene Municipal que se alcooliza na taberna do beco. O homem das farripas coladas a tinta ao crânio que não perde uma revista pornográfica. A mulher da frutaria a quem o marido bate com o cinto. O homossexual pouco discreto que chupa a esferográfica na contemplação dos nórdicos ociosos.
6
Todos os loucos da Baixa da cidade desaguam, manhã cedo e caindo a noite, na tabacaria. A senhora do banquinho conhece-os a todos. Sabe que cada um deles fala um idioma que não é português, mas uma língua própria cuja gramática é a solidão, a miséria, o vinho e a felicidade. A senhora da tabacaria é poliglota. Sentou-se no banquinho e aprendeu de ouvido as línguas do rio.
7
Desce a noite ao mundo, sobe a praça ao céu. A senhora da tabacaria arquiva o estendal. Os santos ilustrados ficam cara a cara com as top-models das telenovelas. Os cachecóis dormem enrolados como serpentes prisioneiras. A senhora da tabacaria encerra o quiosque, o casaco e a jornada. Passa pela frutaria, deixa uma palavra boa à mulher do cinto, leva tangerinas e recolhe ao apartamento caixa-de-fósforos por cima da loja dos 300 chineses.
8
A senhora da tabacaria janta ervas-de-molho, um segmento de bacalhau e uma maçã. Os olhos latejam-lhe como berlindes diabéticos. Deita-se em linha diagonal na cama grená. Pelas frinchas da persiana, o néon da Lua pontua reticências intermináveis. A senhora da tabacaria, ao adormecer, chega-se um pouco para o lado: é preciso dar espaço ao pai dela. Também os mortos têm sono, também os mortos ocupam lugar.
9
De manhã, café-com-leite e uma fatia de pão seco. Casaco, elevador, bons-dias aos chineses sorridentes, beco, praça, tabacaria. Chegam os primeiros loucos. Conversações. A senhora da tabacaria, consultando o céu, hesita quanto a pôr já os plásticos ou não. Começam a passar os velhos para os raios-X. O rio retoma o curso. A senhora da tabacaria senta-se no banquinho.
10
Uma excursão de espanhóis fotografa a igreja velha. O rapaz da Higiene Municipal surge do beco. Um homem com um bandolim quebrado entra na loja de música. O presidente da câmara chega bordo de um carro longo e luzidio como uma enguia. A senhora da tabacaria vende dois jornais desportivos, lembra-se das tangerinas e senta-se no banquinho a descascar uma sem olhar para ela.
A senhora da tabacaria está sentada num banquinho à frente do balcão. O vento agita o estendal de revistas, cachecóis desportivos, postais, jornais e camisolas. Quando chove, a senhora da tabacaria levanta-se do banquinho e recobre o mundo de plásticos. É uma tabacaria de vão de escada. A escada sobe para um gabinete de raios-X e para um escritório de advogado. O vento também entra e também sobe.
2
Os ossos da senhora da tabacaria não precisam de subir ao gabinete de raios-X para que os atravessem o vento e a luz. Se fossem de madeira, os ossos da senhora da tabacaria suportariam uma cabana na neve. E à porta da cabana, num banquinho, a alma da senhora da tabacaria haveria de continuar vigiando o mundo como desde sempre.
3
O mundo visto da tabacaria não vem nas revistas que ela vende. A igreja velha vem nos postais. Vista de lado, a câmara municipal apresenta uma carranca de democracia austera. A loja de música parece-se, na memória, com os suspensórios do falecido senhor que a fundou. A esplanada do café, em dias de sol, formiga de nórdicos ociosos a quem a senhora da tabacaria vende postais e oferece amabilidade.
4
Vistas do céu, a tabacaria e a senhora dela pulsam de cor: só os jornais a pretibranco desmentem a euforia arcoirisdecente das revistas, os azulejos de papel que os postais nasceram para ser e a ondulação dos cachecóis benfica-sporting-porto-académica.
5
A senhora da tabacaria, olhando a praça a partir do seu banquinho cósmico, sabe que o tempo é um rio e que todos são, ou somos, náufragos. O rapaz da Higiene Municipal que se alcooliza na taberna do beco. O homem das farripas coladas a tinta ao crânio que não perde uma revista pornográfica. A mulher da frutaria a quem o marido bate com o cinto. O homossexual pouco discreto que chupa a esferográfica na contemplação dos nórdicos ociosos.
6
Todos os loucos da Baixa da cidade desaguam, manhã cedo e caindo a noite, na tabacaria. A senhora do banquinho conhece-os a todos. Sabe que cada um deles fala um idioma que não é português, mas uma língua própria cuja gramática é a solidão, a miséria, o vinho e a felicidade. A senhora da tabacaria é poliglota. Sentou-se no banquinho e aprendeu de ouvido as línguas do rio.
7
Desce a noite ao mundo, sobe a praça ao céu. A senhora da tabacaria arquiva o estendal. Os santos ilustrados ficam cara a cara com as top-models das telenovelas. Os cachecóis dormem enrolados como serpentes prisioneiras. A senhora da tabacaria encerra o quiosque, o casaco e a jornada. Passa pela frutaria, deixa uma palavra boa à mulher do cinto, leva tangerinas e recolhe ao apartamento caixa-de-fósforos por cima da loja dos 300 chineses.
8
A senhora da tabacaria janta ervas-de-molho, um segmento de bacalhau e uma maçã. Os olhos latejam-lhe como berlindes diabéticos. Deita-se em linha diagonal na cama grená. Pelas frinchas da persiana, o néon da Lua pontua reticências intermináveis. A senhora da tabacaria, ao adormecer, chega-se um pouco para o lado: é preciso dar espaço ao pai dela. Também os mortos têm sono, também os mortos ocupam lugar.
9
De manhã, café-com-leite e uma fatia de pão seco. Casaco, elevador, bons-dias aos chineses sorridentes, beco, praça, tabacaria. Chegam os primeiros loucos. Conversações. A senhora da tabacaria, consultando o céu, hesita quanto a pôr já os plásticos ou não. Começam a passar os velhos para os raios-X. O rio retoma o curso. A senhora da tabacaria senta-se no banquinho.
10
Uma excursão de espanhóis fotografa a igreja velha. O rapaz da Higiene Municipal surge do beco. Um homem com um bandolim quebrado entra na loja de música. O presidente da câmara chega bordo de um carro longo e luzidio como uma enguia. A senhora da tabacaria vende dois jornais desportivos, lembra-se das tangerinas e senta-se no banquinho a descascar uma sem olhar para ela.
Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006
5 comentários:
Ao ler a história logo imaginei a baixa de Coimbra e no entanto pode enquadrar-se em qualquer outro local. Bom relato. Literário pois claro.
A senhora dos jornais, afinal de contas, é igual às outras senhoras dos jornais. Vende o mundo e o seu mundo será apenas aquilo que os seus olhos vêem daquele vão de escada.
E por perto há sempre um Esteves com ou sem metafísica.
exacto, Manel, exacto.
Está lindo! A senhora da tabacaria agradece. Sentiu a alma desnudada. Só te esqueceste da pomba chica que todas as manhãs entra pela tabacaria, e aguarda pacientemente os grãezinhos de arroz, que ela tem sempre guardados para ela.
Obrigada.
Beijos da tua Xelinha
Fico presa nas histórias que contas...Beijos.
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