1
Nunca mais lá voltei. Nunca mais lá voltarei. Não podemos regressar a um sítio onde fomos felizes e depois deixámos de ser. E eu fui feliz naquela casa de madeira. No lar, ardia a perfumada lenha de oliveira. Cá fora, da névoa fantasmática eriçavam-se copas agudas.
2
Nas tábuas pregadas da parede estavam os alimentos enlatados. Eu alinhava-os como se fossem livros. De quinze em quinze dias, saía para me abastecer de comida, vinho e jornais. Bebia café de máquina na vila. Depois, voltava àquela solidão voluntária. E eu era feliz.
3
Deitava-me muito cedo. Baixava o som do rádio para ouvir o vento da noite, que corria e uivava pelo mundo como um cão transparente. Antes de me deitar, reforçava o lume. O vento e o fogo cantavam para mim. O mel do cansaço cerrava-me os olhos. E sem sonhos eram as minhas noites.
4
Levantava-me antes da primeira luz. Saía para respirar o frio. Fazia algumas flexões, bebia água do poço e fumava meio cigarro sem travar o fumo. Depois, reentrava para fazer café fresco. Fritava toucinho e ovos, abria um frasco de espargos e torrava pão. Ao lume, fervia já a água na panela negra. Acabava de comer, punha um pedaço de carne salgada na panela e levantava a tampa do piano.
5
Tocava hora e meia. Ia compondo frases esparsas, verificando a sinceridade delas. Descia a tampa do piano, sentava-me à mesa, arredava a louça suja e fixava na pauta a música possível de cada dia.
6
Assim era tudo, assim era a minha vida. Até que as mulheres apareceram. Eram três. Eram transparentes. Vi-as ao pé do poço. Levitavam. Não olhavam umas para as outras. Não olhavam nada. Eram cegas e brancas. Tinham cabelo até ao chão. Rodaram as três cabeças e fixaram-me nos olhos. Nos meus olhos.
7
Fugi. Não voltei a casa. Corri pela floresta. Levava uma pressa cardíaca de coelho. Na vila, pedi aguardente. Não fui capaz de contar nada a ninguém. Conto agora.
8
Vivo na cidade. Aqui, os fantasmas são feitos de gente viva. Vivem no ar alto dos prédios. Entristecem dentro de carros eléctricos. Mas não me olham nos olhos.
9
Vivo mal. Durmo dentro de cartões frigoríficos. Gosto das colunas gregas do Teatro Nacional. Ouço música interior. Nunca mais toquei piano. Nunca mais tocarei.
10
Canto para mim mesmo. Resta-me isso. Às vezes, vou ver o rio. Há barcos estrangeiros. Fiquei a dever a aguardente no café da vila. Mas não voltarei. Elas tratam da casa.
Nunca mais lá voltei. Nunca mais lá voltarei. Não podemos regressar a um sítio onde fomos felizes e depois deixámos de ser. E eu fui feliz naquela casa de madeira. No lar, ardia a perfumada lenha de oliveira. Cá fora, da névoa fantasmática eriçavam-se copas agudas.
2
Nas tábuas pregadas da parede estavam os alimentos enlatados. Eu alinhava-os como se fossem livros. De quinze em quinze dias, saía para me abastecer de comida, vinho e jornais. Bebia café de máquina na vila. Depois, voltava àquela solidão voluntária. E eu era feliz.
3
Deitava-me muito cedo. Baixava o som do rádio para ouvir o vento da noite, que corria e uivava pelo mundo como um cão transparente. Antes de me deitar, reforçava o lume. O vento e o fogo cantavam para mim. O mel do cansaço cerrava-me os olhos. E sem sonhos eram as minhas noites.
4
Levantava-me antes da primeira luz. Saía para respirar o frio. Fazia algumas flexões, bebia água do poço e fumava meio cigarro sem travar o fumo. Depois, reentrava para fazer café fresco. Fritava toucinho e ovos, abria um frasco de espargos e torrava pão. Ao lume, fervia já a água na panela negra. Acabava de comer, punha um pedaço de carne salgada na panela e levantava a tampa do piano.
5
Tocava hora e meia. Ia compondo frases esparsas, verificando a sinceridade delas. Descia a tampa do piano, sentava-me à mesa, arredava a louça suja e fixava na pauta a música possível de cada dia.
6
Assim era tudo, assim era a minha vida. Até que as mulheres apareceram. Eram três. Eram transparentes. Vi-as ao pé do poço. Levitavam. Não olhavam umas para as outras. Não olhavam nada. Eram cegas e brancas. Tinham cabelo até ao chão. Rodaram as três cabeças e fixaram-me nos olhos. Nos meus olhos.
7
Fugi. Não voltei a casa. Corri pela floresta. Levava uma pressa cardíaca de coelho. Na vila, pedi aguardente. Não fui capaz de contar nada a ninguém. Conto agora.
8
Vivo na cidade. Aqui, os fantasmas são feitos de gente viva. Vivem no ar alto dos prédios. Entristecem dentro de carros eléctricos. Mas não me olham nos olhos.
9
Vivo mal. Durmo dentro de cartões frigoríficos. Gosto das colunas gregas do Teatro Nacional. Ouço música interior. Nunca mais toquei piano. Nunca mais tocarei.
10
Canto para mim mesmo. Resta-me isso. Às vezes, vou ver o rio. Há barcos estrangeiros. Fiquei a dever a aguardente no café da vila. Mas não voltarei. Elas tratam da casa.
Caramulo, tarde de 13 de Setembro de 2006
1 comentário:
Pois tratam, Daniel.
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