As árvores são mãos que saem da terra para oferecer fruta e para agarrar os pássaros. Depois, as árvores, tal como acontece com as pessoas, acabam por largar tudo. À noite, vivem outra vida, também como as pessoas.
– Em que estás a pensar, Joaquim? – perguntou Rosalina.
– Estou só a olhar as árvores, Rosalina – respondeu o marido.
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Costumavam vir aqui aos domingos, depois da missa. Saíam da capela refrigerados pela pedra antiga e pelo ritual mais antigo ainda da resignação. Não viviam na vila. A casa deles era do outro lado da serra. Ela tomava um chá de folha de laranjeira. Ele bebia um cálice de porto branco e olhava as árvores.
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Rosalina era costureira. A mãe dela tinha sido costureira. O pai, alfaiate. Rosalina manteve-se solteira até aos 34 anos. Os pais tinham morrido, com pouco intervalo um do outro, no ano em que a filha perfizera a idade de Cristo. Uma noite de Verão, Rosalina foi ao parque da vila escutar a filarmónica que tocava no coreto. A brisa da música despenteava as árvores.
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O homem que tocava requinta tinha o cabelo negro como o outro lado da Lua. Também era dono de uma dentição esplêndida e de um sorriso arterial. Quando o concerto acabou para dar lugar à sanfona do bailarico, ele desceu do coreto e dirigiu-se sem hesitação a Rosalina.
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Ele convidou-a para uma gasosa no bufete. As amigas dela deram um frufru nervoso de gargalhadinhas e saltimbancaram para a roda da dança. De modo que Rosalina se viu sozinha e cara-a-cara com o destino. O destino chamava-se Joaquim. E o destino era um cavalheiro.
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Casaram-se no Inverno. A banda filarmónica tocou à missa. Um quarteto de tarola, trompete, saxofone tenor e tuba animou o copo-de-água. Joaquim ficou a morar na casa do alfaiate. Onde tinha sido a sala-de-provas, arrumados em caixas de madeira os alfinetes, as tesouras, a fita métrica e o giz-de-talco, instalou uma aula de solfejo. As crianças vinham, sentavam-se nos bancos miniaturais e pontuavam o pentagrama num silêncio de monges copistas.
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Rosalina não podia ter filhos. O útero tinha-se-lhe mirrado como um limão silvestre. Resignaram-se. Jantavam caldo de galinha e peras assadas. Depois, ela recolhia-se à sala de costura a terminar alguma blusa. Ele sintonizava a rádio para Londres e ficava a ouvir a outra vida das árvores disfarçadas de grande orquestra.
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Com os anos, Rosalina tornou-se mais piedosa. Pediu a Joaquim que a acompanhasse, aos domingos de manhã, à capela da vila. Ele disse-lhe que sim. Depois da capela, era a subir até ao largo das tílias.
Ainda aqui está o café. Nessa altura, era do meu Pai. Agora é meu. Mas ninguém me pede chá de folha de laranjeira.
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Também os anos passam por mim. Penduram-se, um a um, nas tílias, balouçam-se um pouco como crianças doentes, dissolvem-se na ramagem. Tenho de comprar uma televisão. Os clientes queixam-se de ser só rádio, só rádio. Quando estou sozinha, ouço música. Quando subo a deitar-me, ouço com os olhos o vento nas árvores.
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A gente não deve perguntar o que já sabe. Joaquim e Rosalina deixaram de vir. Também o meu Pai deixou de vir – e mais era de cá. Lembro-me de ser pequena como uma folha de oliveira e de ele me levar na motorizada a casa do alfaiate para aprender música.
Este Verão, hei-de fechar uma noite para ir ao parque ouvir a filarmónica. Tenho 34 anos, boa idade para que as árvores me larguem da mão.
Caramulo, tarde de 2 de Outubro de 2006
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