Se uma pessoa é tão mais pequena do que o mundo, por que motivo são os problemas do mundo tão mais pequenos do que os de uma só pessoa? Maiores do que os problemas de uma só pessoa são os problemas de uma pessoa só. O mundo não passa de palco, cenário e plateia. O drama é singular. É pessoal.
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Esta treta toda dos problemas do mundo vs o mundo de problemas de cada um é da autoria de Celso Várzea Rodrigues, o meu amigo Celso, reformado dos caminhos-de-ferro e filósofo pessimista (ou péssimo filósofo) a partir do terceiro cálice de anis, no Aníbal.
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O Celso não é viúvo, tem mulher. A mulher recebe a reforma dele e transforma-a em comida, aquecimento, limpeza e quotidiano. O Celso pede-lhe todas as manhãs umas moedas para o anis a cavalo do qual combate contra o resto do mundo. Sozinho, claro.
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O meu amigo Celso não é mau. Nem mau amigo, nem mau Celso. O mundo não é grande coisa, concedo. Mas é o único mundo que há. Não há outro. “Precisamente!”, rebenta ele quando eu digo isto.
– Precisamente! Devíamos fazer outro deste que temos!
Entretanto, a tarde cai como um pano de cena. Cada um volta então para casa. Cada um para sua casa, cada um para seu mundo.
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Até ontem. Isto foi sempre assim até ontem. O meu amigo Celso Várzea Rodrigues apareceu ao balcão do Aníbal à hora do costume. O Aníbal já levantava o braço para a estante de vidro onde a garrafa de anis exibe a cegueira do seu açúcar glauco quando o meu amigo Celso disse:
– Antes quero absinto.
Exclamou o Aníbal:
– Ena pá, absinto?!
E o Celso:
– Um gajo é que sabe o que quer. Só um gajo é que sabe. O mundo que se lixe!
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E portantos, o mundo lixou-se e o Celso bebeu uma data de cálices de absinto. Isto foi ontem. Era dia da sociedade do totoloto. O Celso não quis entrar. Eu e o Aníbal pensámos que ele estava no gozo. Não estava. Não quis entrar no totoloto e não entrou. Pagou a despesa dele e saiu.
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Vieram dizer ao Aníbal e o Aníbal disse-mo a mim: o Celso está condenado da próstata. Tem o caranguejo. Ontem, veio desenganado do Centro de Saúde. Hoje, ainda não veio.
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Estou sentado ao balcão do Aníbal. Está a chover um cântaro de água fria por metro quadrado. A latada, a figueira e o pessegueiro parecem pessoas vegetais. Pode ser que o Celso ainda venha, que tenha ido a Viseu em busca de uma segunda opinião – e que este segundo médico o tenha devolvido ao mundo.
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O telejornal abre com as inundações por todo o País. Uma senhora morreu em Pombal. Barcos de borracha navegam entre reclamos de farmácias e placas de advogados. Uma desgraça colectiva – o mundo não presta, mas a Natureza é doida.
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E se amanhã o Celso não vier? O Aníbal diz que manda para o lixo a garrafa de anis. E eu pergunto:
– Então e a de absinto, também mandas?
E ele diz que não, que não manda. Diz:
– Mando fora só a de anis porque tenho a impressão que já é de outro mundo.
Caramulo, tarde de 26 de Outubro de 2006
1 comentário:
As imagens que transmites são todas brilhantes, na nudez desta Vida tão estúpida!! Beijos.
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