16/10/2006

O Muro - história 1 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Estão sentados num muro baixo dois homens. Os dois homens são indivíduos normais. O muro é que não é nada normal. Quer dizer, em si mesmo é um muro normalíssimo: tijolo colado a cimento e pintado a branco. O insólito é tratar-se de um muro que separa nada de coisa nenhuma. Um muro edificado no meio de um descampado. Um muro sem uma casa-jardim atrás e sem uma estrada à frente.

2
Um dos homens sentados naquele muro estranho fala. Diz ele:
– Isto é como estar sentado em cima de uma história.
E o outro, que é mais velho, responde:
– Sim, uma história que não deveria nunca ter acontecido.

3
Está calor. É uma tarde de sol branco que faz sede até aos olhos. Em cima do muro, o homem mais velho diz:
– Não se deve começar uma casa pelo telhado. Mas por um muro também não.
E o outro homem concorda:
– Isso é muito verdade. Isso é mesmo muito verdade.

4
Quinze anos antes desta conversa, tinha acontecido a história. Um casal estava no centro dos acontecimentos. Uma mulher, depois de enviuvar, tinha-se entendido com o professor primário da terra, que era muito novo e muito solteiro. Para calarem o povo, casaram-se. Ela já tinha uma casa, mas ele quis construir outra.

5
Ele quis construir outra para não ter de morar onde o outro tinha vivido; onde o outro tinha, talvez, sido feliz; e onde o outro tinha morrido. A mulher teimou que não. O homem teimou que sim.

6
O que aconteceu depois foi isto: a mulher vivia na casa que já era dela, mas o marido professor continuava na pensão da vila. A mulher era dona de um terreno descampado à saída da localidade. Era terra seca, sem água por baixo nem por perto. Foi aí que ele começou e acabou o muro.

7
De regresso ao presente, estão os dois homens sentados no muro branco, de costas para a terra vazia. Diz o mais novo:
– Há ideias que ganham mais força do que o juízo.
Responde o mais velho:
– Isso é muito verdade. Isso é mesmo muito verdade.

8
O professor, quando acabou de fazer o muro, foi ter com a mulher e disse-lhe assim:
– Tens ali um muro. Ou passas comigo para o lado de lá e fazemos lá uma casa nova, ou ficas do lado de cá e nunca mais nos juntamos.

9
Nunca mais se juntaram. Passaram dois, quatro, cinco anos. A mulher morreu, mas não sem antes deixar em testamento a casa à filha do falecido. O homem herdou o muro. Um dia, foi-se embora e nunca mais voltou.

10
Passaram mais anos até que veio o dia em que dois homens se sentaram no muro. Diz o mais novo:
– Compadre, você fazia aqui uma casa?
Responde o mais velho:
– Eu não. Já tenho casa que chegue.




Caramulo, tarde de 1 de Setembro de 2006

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Canzoada Assaltante