1
Era uma vez um bosque de choupos e canas-da-Índia onde havia um poço natural de água álgida e verde a que chamávamos “O Frigorífico”. Árvores caídas serviam-nos de trampolins. Mergulhávamos n’O Frigorífico em plena nudez: como se fôramos folhas; ou frutos; ou flores.
2
Naquele tempo, éramos tão juvenis como os primeiros minutos da manhã. Éramos rapazes, filhos do Homem, filhos da Mulher e filhos do próprio Tempo, que, naquele tempo, se disfarçava de Bosque.
3
Hoje, as crianças nascem dentro de consolas electrónicas. Mesmo acontecendo portuguesas, as crianças de hoje vivem no Japão e na América ao mesmo tempo. Não podem nadar nuas nem aprender a própria sexualidade pela genitália alheia dos nadadores – como acontecia, naquele tempo, n’O Frigorífico.
4
As sapatilhas eram sapatilhas, não se chamavam “ténis”. Calçávamos as sapatilhas à saída da água. Os pés secavam dentro da lona e da borracha. De regresso a casa, pelo Campo, roubávamos fruta que depois era rilhada por dentes naturais. Era o tempo antes das próteses acrílicas, era o tempo antes do adultério e da fábrica e dos filhos nipónico-americanos.
5
De repente, sem avisar, um de nós fez 19 anos. O outro ao lado também. E o outro também. E eu também. E o outro também. E tu também. E depois tu fizeste 26 – e nós todos também – e mais 16. tornámo-nos órfãos velhos que sabem nadar mas nunca nadam.
6
Um dos nadadores tornou-se merceeiro. A sogra passou a mercearia à filha e a filha passou-se para ele. Ele cuida do balcão de mármore (vinhos e petiscos), ela cuida da farinha, do óleo alimentar, do sabão, dos caramelos e das conservas. Outro dos nadadores fez-se electricista de automóveis e casou-se com uma contínua da escola preparatória. Eu fiz-me à vida – e até hoje nada, nadador.
7
Natal sim, Páscoa não, volto à terra. Não volto ao bosque. Volto à terra. Mordo uns tremoços, jogo bilhar, oiço dizer, digo pouco ou nada. E nada, nadador.
8
Falhei a admissão à Marinha por causa dos dentes. Cumpri a Infantaria, não concorri à GNR, sobrevivi a um casamento rápido com uma divorciada que voltou a sê-lo, estive no Algarve como segurança de um bar ranhoso e manhoso e agora não sei como é que há-de ser.
9
Não sei por que razão a vida só tem um filme de jeito no princípio e depois nos obriga a vender pipocas e farturas durante o resto da sessão. O meu filme chama-se “O Frigorífico” e foi um desastre comercial. Nem a rapariga da bilheteira me conhece.
10
Só volto ao bosque quando se faz noite. Estou outra vez nu. Ligo o rádio e meto-me na cama. Só é preciso fechar os olhos. A música é toda feita de flautas de vento nos choupos e nas canas-da-Índia. A água é verde. As árvores tombadas servem de trampolins. Sonho com fruta, acordo com frio, a vida é bela.
Era uma vez um bosque de choupos e canas-da-Índia onde havia um poço natural de água álgida e verde a que chamávamos “O Frigorífico”. Árvores caídas serviam-nos de trampolins. Mergulhávamos n’O Frigorífico em plena nudez: como se fôramos folhas; ou frutos; ou flores.
2
Naquele tempo, éramos tão juvenis como os primeiros minutos da manhã. Éramos rapazes, filhos do Homem, filhos da Mulher e filhos do próprio Tempo, que, naquele tempo, se disfarçava de Bosque.
3
Hoje, as crianças nascem dentro de consolas electrónicas. Mesmo acontecendo portuguesas, as crianças de hoje vivem no Japão e na América ao mesmo tempo. Não podem nadar nuas nem aprender a própria sexualidade pela genitália alheia dos nadadores – como acontecia, naquele tempo, n’O Frigorífico.
4
As sapatilhas eram sapatilhas, não se chamavam “ténis”. Calçávamos as sapatilhas à saída da água. Os pés secavam dentro da lona e da borracha. De regresso a casa, pelo Campo, roubávamos fruta que depois era rilhada por dentes naturais. Era o tempo antes das próteses acrílicas, era o tempo antes do adultério e da fábrica e dos filhos nipónico-americanos.
5
De repente, sem avisar, um de nós fez 19 anos. O outro ao lado também. E o outro também. E eu também. E o outro também. E tu também. E depois tu fizeste 26 – e nós todos também – e mais 16. tornámo-nos órfãos velhos que sabem nadar mas nunca nadam.
6
Um dos nadadores tornou-se merceeiro. A sogra passou a mercearia à filha e a filha passou-se para ele. Ele cuida do balcão de mármore (vinhos e petiscos), ela cuida da farinha, do óleo alimentar, do sabão, dos caramelos e das conservas. Outro dos nadadores fez-se electricista de automóveis e casou-se com uma contínua da escola preparatória. Eu fiz-me à vida – e até hoje nada, nadador.
7
Natal sim, Páscoa não, volto à terra. Não volto ao bosque. Volto à terra. Mordo uns tremoços, jogo bilhar, oiço dizer, digo pouco ou nada. E nada, nadador.
8
Falhei a admissão à Marinha por causa dos dentes. Cumpri a Infantaria, não concorri à GNR, sobrevivi a um casamento rápido com uma divorciada que voltou a sê-lo, estive no Algarve como segurança de um bar ranhoso e manhoso e agora não sei como é que há-de ser.
9
Não sei por que razão a vida só tem um filme de jeito no princípio e depois nos obriga a vender pipocas e farturas durante o resto da sessão. O meu filme chama-se “O Frigorífico” e foi um desastre comercial. Nem a rapariga da bilheteira me conhece.
10
Só volto ao bosque quando se faz noite. Estou outra vez nu. Ligo o rádio e meto-me na cama. Só é preciso fechar os olhos. A música é toda feita de flautas de vento nos choupos e nas canas-da-Índia. A água é verde. As árvores tombadas servem de trampolins. Sonho com fruta, acordo com frio, a vida é bela.
Caramulo, tarde de 17 de Outubro de 2006
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