1
O motorista perdeu o controle do autocarro por causa da chuva ou do destino ou de ambas essas coisas imponderáveis. A viatura galgou a protecção de metal, embateu de lado na ravina e imobilizou-se de rodas para o ar como um insecto descomunal. Morreram quatro pessoas.
2
Uma das quatro vítimas mortais era um homem de 48 anos para quem a vida, aliás, já não contava muito. Naquela noite em que o destino chovia, tinha apanhado o expresso da noite como sempre costumava fazer. Mas já não era uma viagem de regresso. Era uma viagem de partida.
3
O homem vivia numa casa baixinha com uma mulher pequena. Os móveis eram de miniatura, assim como as colheres, as facas, os pratos, as pratas e os garfos. A banheira era pouco maior do que uma terrina. Só a esperança do homem era grande. A esperança da mulher também era grande, mas diferente da esperança do homem.
4
A mulher tinha esperança noutro homem. Esse outro homem quase não entra nesta história. Basta dizer que era um homem grande e que vivia numa casa enorme. A mulher deitava-se ao lado do marido, mas era com a ideia do outro homem que dormia.
5
Todas as manhãs, muito cedo, o homem pequeno partia no expresso. Cumpria o trabalho dele na cidade grande e voltava para casa para anunciar involuntariamente a enormidade da noite. A mulher já se tinha deitado com a ideia dela. Ele comia na solidão miniatural da cozinha. Lavava a louça e deitava-se na cama grande de mais para a esperança dele.
6
A esperança dele era ter o que já tinha: aquela casa, aquela mulher, aquele trabalho e aquela vida. Ter o que se tem chama-se manter. No caso dele, começou a chamar-se reter. Passou a dormir no quarto do filho que nunca tiveram nem mantiveram.
7
Era uma casa baixinha apenas aumentada pela lupa do desespero. Não havia nada a fazer senão esperar. Nunca lhes passou pela cabeça, nem a ele nem a ela, dar o passo-de-gigante da separação. Acreditavam ambos num Deus que havia escrito num livro a equivalência do casamento ao tamanho da vida.
8
A solução era contrária à vida. Mas o mesmo Deus escritor tinha tudo previsto, havendo determinado que a vida, ao contrário de um autocarro, não pode ser acelerada em plena noite, em plena chuva, em pleno destino.
9
É possível que Deus, Que, por tudo conter, não tem tamanho, sinta por vezes pena das coisas pequenas que criou ao escrever um tão grande livro. É possível que a tempestade, o asfalto e as protecções metálicas das auto-estradas se conjuguem como verbos para benefício de princípio e de fim de histórias.
10
O homem pequeno foi, aos 48 anos de idade, uma das quatro vítimas mortais do acidente que nessa noite abriu os telejornais. Não viveu uma vida grande. Aos 48 anos, ainda só se começa a saber um pouco muito pouquinho da vida mínima. O motorista do autocarro sobreviveu. É um homem grande e vive numa casa enorme.
O motorista perdeu o controle do autocarro por causa da chuva ou do destino ou de ambas essas coisas imponderáveis. A viatura galgou a protecção de metal, embateu de lado na ravina e imobilizou-se de rodas para o ar como um insecto descomunal. Morreram quatro pessoas.
2
Uma das quatro vítimas mortais era um homem de 48 anos para quem a vida, aliás, já não contava muito. Naquela noite em que o destino chovia, tinha apanhado o expresso da noite como sempre costumava fazer. Mas já não era uma viagem de regresso. Era uma viagem de partida.
3
O homem vivia numa casa baixinha com uma mulher pequena. Os móveis eram de miniatura, assim como as colheres, as facas, os pratos, as pratas e os garfos. A banheira era pouco maior do que uma terrina. Só a esperança do homem era grande. A esperança da mulher também era grande, mas diferente da esperança do homem.
4
A mulher tinha esperança noutro homem. Esse outro homem quase não entra nesta história. Basta dizer que era um homem grande e que vivia numa casa enorme. A mulher deitava-se ao lado do marido, mas era com a ideia do outro homem que dormia.
5
Todas as manhãs, muito cedo, o homem pequeno partia no expresso. Cumpria o trabalho dele na cidade grande e voltava para casa para anunciar involuntariamente a enormidade da noite. A mulher já se tinha deitado com a ideia dela. Ele comia na solidão miniatural da cozinha. Lavava a louça e deitava-se na cama grande de mais para a esperança dele.
6
A esperança dele era ter o que já tinha: aquela casa, aquela mulher, aquele trabalho e aquela vida. Ter o que se tem chama-se manter. No caso dele, começou a chamar-se reter. Passou a dormir no quarto do filho que nunca tiveram nem mantiveram.
7
Era uma casa baixinha apenas aumentada pela lupa do desespero. Não havia nada a fazer senão esperar. Nunca lhes passou pela cabeça, nem a ele nem a ela, dar o passo-de-gigante da separação. Acreditavam ambos num Deus que havia escrito num livro a equivalência do casamento ao tamanho da vida.
8
A solução era contrária à vida. Mas o mesmo Deus escritor tinha tudo previsto, havendo determinado que a vida, ao contrário de um autocarro, não pode ser acelerada em plena noite, em plena chuva, em pleno destino.
9
É possível que Deus, Que, por tudo conter, não tem tamanho, sinta por vezes pena das coisas pequenas que criou ao escrever um tão grande livro. É possível que a tempestade, o asfalto e as protecções metálicas das auto-estradas se conjuguem como verbos para benefício de princípio e de fim de histórias.
10
O homem pequeno foi, aos 48 anos de idade, uma das quatro vítimas mortais do acidente que nessa noite abriu os telejornais. Não viveu uma vida grande. Aos 48 anos, ainda só se começa a saber um pouco muito pouquinho da vida mínima. O motorista do autocarro sobreviveu. É um homem grande e vive numa casa enorme.
Caramulo, tarde de 23 de Outubro de 2006
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