01/10/2006

Nevoeiro, Noites e Chegada

Entre o Caramulo e a Estrela, o longo vale estava longamente açucarado de sol. O nevoeiro tinha ficado lá em cima, no ponto de partida, como um elmo. A um par de quilómetros da chegada, no entanto, a serra dissolvia-se numa nuvem quase negra, irmã decerto da primeira. Às seis da tarde, a noite deixava já entrever a sua autoridade colossal.

Com reserva na pensão e no restaurante, a vida tornou-se-me quase fácil. Pedi licença à dona do café, obtive-a e liguei o computador à tomada. Trabalhei um pouco. O mundo focou-se no quadrado de luz. O Vitória de Setúbal jogava na televisão e na Holanda ao mesmo tempo. Gente bem vestida flanelava nas mesas da sala. Recebi dois telefonemas. O segundo fez-me rir, facto que agradeci por dentro. Às oito, fui jantar. O Nacional da Madeira jogava na televisão e na ilha ao mesmo tempo. Homens pequeninos infiltravam martinis e azeitonas no sangue. Eu tornei-me um dos homens. A toalha tinha um buraco de cigarro. Queimei a boca com a flor de uma recordação despropositada. Não o sabia então, mas essa flor combustível revisitar-me-ia em sonhos. Combinei para as onze da manhã seguinte a primeira das entrevistas da expedição.

Depois de jantar, o caderno abriu-se-me como uma borboleta amnésica. Como sempre, eu estava atento ao despiciendo. De modo que me encontrava pronto a dançar com os meus lobos. Dancei. À mão esquerda, solícito, um livro de 1932: “The Narrow Corner”, de W. S. Maugham. Uma serenidade opiácea, por assim dizer, dominava o mundo exterior: uma rotunda relvada exposta à poalha de ouro da iluminação pública. E as bolsas de ouro da luz nas massas de névoa. Telefonam-me nessa altura. Atendo. É uma senhora que conheci em outras paragens, aragens outras. Com palavras não inteiras (quartilhas palavras, por assim dizer), pede-me um escrito. Digo-lhe que sim. Antes de deitar o lápis, penso:
– Escusavam de pedir-me que escreva. Não posso deixar de fazê-lo.

Rápida, a mente. Rápida mas circular. É como uma rotunda: cheia de relva, pontuada de flores vermelhas (pretas sob a Lua).

Toquei a boca como a uma música. Não exerço. Olho a rotunda, um que outro automóvel esbeiçado de vermelho-rubi na noite farolina. Duas árvores espasmam como pulmões fotografados. Um bloco de dez andares quase todo apagado, à excepção de duas ou três cartolinas amarelas dentro das quais crianças escrevem os trabalhos-de-casa enquanto as mães delas, divorciadas, lavam o tachito que foi de arroz.

Homens de antebraços civis falam de construção. Como os escritores: sempre nas obras. Homens pequeninos, rotundos, de enorme força. Animalizados pelo salário e pelo futebol (Nacional, 1 – Rapid de Bucareste, 2). O Setúbal empatou a zero na Holanda mas não se safou, tinha perdido em casa. Um homem também pode perder em casa, a começar pela própria casa. (Dentro das cartolinas amarelas, as mães separadas passam o serão agarradas às salas de conversação para adultos da rede.)

O outro dia culmina na visita nocturna à casa do pastor. A mulher, queijeira por fatalidade, poderia ter sido outra coisa na vida. Outra mulher – concluo. Regresso à pensão, não sem antes apascentar na pastelaria uma melancolia material como uma ovelha.

Não há muito mais. Almoço e regresso à serra de partida. Casas abandonadas pelas encostas. A complacência dos sábados. A gata cheia de fome e de saudades. O nevoeiro, levantada a tenda, voltou a permitir a cristalaria das estrelas. Do outro lado do mundo, a queijeira deita-se. O homem dá ainda uma volta pela casa escura.






Caramulo-Seia-Caramulo, 28 a 30 de Setembro de 2006

1 comentário:

Anónimo disse...

Ah, está belo, claro. Tem momentos sublimes,

Canzoada Assaltante