06/10/2006

O Náufrago da Chuva - história 14 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Era uma vez um país onde a chuva era tão dada a eternidades, que as pessoas se deitavam cedo para sonhar com o Sol. Depois, é claro que aquilo passava. Naquele país, as coisas passavam para que tudo fosse para sempre. Foi nesse país que nasci, é nesse país que vivo.

2
Chamo-me Ismael. Sim, Ismael como o náufrago do romance Moby Dick. Não sou marinheiro. Gostaria de ter sido marinheiro. Sou cobrador de seguros. Chamo-me Ismael e sou cobrador de seguros. A minha ex-mulher é enfermeira. Trocou-me por um médico. Não posso criticá-la.

3
Se eu fosse marinheiro, não haveria de cobrar nada a ninguém. Nem dinheiro, nem explicações, nem remorsos, nem recordações. Equilibrava-me na firme inconstância da ondulação. Dava a cara a curtir ao sal e ao vento. E não sonhava com o Sol porque aí estava ele, na pele do peixe que esfaqueia de repente a tona d’água.

4
Tenho o meu tempo. Entre cobranças, vou à Brasileira, encomendo um copo de café-com-leite e um pãozinho-de-manteiga e leio um pouco. Gosto de ler relatos de crimes famosos. Aqueles de que gosto mais são os homicídios do século XIX na Inglaterra. Até já percebo um pouco do assunto, valha-me Deus.

5
Nunca li o romance Moby Dick. Vi o filme e gostei. Pode ser que ainda leia o Moby Dick. Tenho tempo para ler. Gosto mais dos crimes ingleses porque lá também chove muito. E faz nevoeiro. Quando bebo o meu café-com-leite e leio, é como se tudo fosse mesmo para sempre. Dá uma espécie de segurança. De segurança e de impunidade.

6
Mais ou menos uns dois anos depois de Emília me ter deixado, deixei eu de me deitar cedo para sonhar com o Sol. Até posso dizer que, em determinado sentido, deixei de ser daqui, deste país. Mudei de chuva. Tornei-me inglês, por assim dizer. Na montra da livraria, perto da Brasileira, estava um volume de relatos de crimes ingleses do século XIX.

7
Matriculei-me numa escola nocturna de línguas e apliquei-me no inglês. Já mandei vir livros de Inglaterra. Tenho um bom dicionário. Lá fora chove, depois passa e depois volta a chover. Tenho um caderno de mercearia no qual aponto os nomes e as datas. Ao contrário da vida, alguns crimes têm solução.
8
Ninguém me pergunta, mas se me perguntassem, eu só teria esta resposta:
– Nos barcos também há tempo para ler.
Fazia o meu quarto de serviço, descia ao beliche e lia as glórias e os desaires da Scotland Yard. Amolecia no chá os duros biscoitos salgados, comia a minha lata de carne e bebia um quartilho de rum. E não pensava em Emília nem lhe escrevia o nome no caderno de mercearia.

9
Pus dinheiro de lado para uma viagem a Londres. A ideia era fazer o circuito de Whitechapel, por onde Jack o Estripador exerceu a sua cutelaria inexplicável e inexplicada. Mas não, nunca irei a Londres. É melhor imaginar do que ver. É melhor imaginar do que viver.

10
Chamo-me Ismael e nunca li o romance Moby Dick. A história é contada na primeira pessoa por um marinheiro, o único sobrevivente do naufrágio que resultou da obsessão do capitão pela baleia branca. Chamo-me Ismael e sou cobrador de seguros. Não sou nenhum náufrago.





Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006

2 comentários:

Fanette disse...

Viajar dentro e fora é sempre saudável. Só não concordo no dizer "É melhor imaginar do que viver." «imaginar» é a história do livro; «viver» é ser corpo presente na felicidade e na tristeza em constante alternância.

Maria Carvalho disse...

Imaginar não nos desilude...

Canzoada Assaltante