1
À esquina da avenida Fernão de Magalhães com a rua Carlos Leite, na cidade que foi de árabes e depois do bispo Fernando, tinha banca montada ao ar livre uma mulher caolha chamada Hermínia Leite Magalhães. “Hermínia” como só ela, “Leite” e “Magalhães” como os nomes das artérias. Hermínia não tinha o olho esquerdo, mas tinha banca montada ao ar livre. Vendia flores, caixas de fósforos, velas, pagelas, pensos-rápidos e cigarros de contrabando.
2
Hermínia tinha vendido, em anos não bons mas – como sempre e com toda a gente – melhores do que os posteriores, sardinhas vivas na praça. Então, ela era uma das mulheres frescas e cantantes que cheiravam mais a peixe e a tostões do que a própria sardinha e o dinheiro mesmo. Deixou de poder arrendar a banca da praça quando o homem dela adoeceu do riso.
3
O homem de Hermínia cumprira o que era de homem. Trabalhara numa olaria de santos e jogadores de futebol em bonecos que ora rezavam ora rematavam. Uma tarde de trovoada, o homem de Hermínia deu de começar a rir baixinho e nunca mais parava, nem parou. Parou Hermínia. Cedeu a banca de sardinhas e deu-se a tratar do homem dela.
4
A história do homem de Hermínia é curta. Por ter enlouquecido, levaram-no. Ela ficou no casebre, atenta ao silêncio molhado que sempre impera depois de alguém se rir. Foi falar com um homem que contrabandeava cigarros, levou dois volumes a crédito, arranjou uma caixa vazia de ananás dos Açores e dobrou a esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Escolheu aquela esquina por causa dos nomes. Era como se fosse uma sociedade.
5
Os tostões tornaram-se suficientes. Não tanto pelo volume de vendas como pela vocação de conselheira que começou a exercer, sem saber quando nem porquê. Pessoas com problemas de azia, ou Zodíaco, ou mal de barriga, ou ciumentas – foi essa gente que pediu e pagou para ouvir Hermínia, cuja palavra acertava sempre no óbvio. E o óbvio era que a vida não podia ser pior do que a morte.
6
A vida não podia ser pior do que a morte – ou do que o riso sem razão. Nem do que a razão sem riso. A vida não podia ser pior do que a vida. As pessoas ouviam-na, compravam-lhe fósforos, cigarros americanos, padres-américos e flores vivas como sardinhas. E deixavam mais qualquer coisinha.
7
Hermínia mantém firme na esquina da Magalhães com a Leite. Já não tem muito tempo. Talvez mais três parágrafos, mas sem contar com este.
8
A vida é uma repetição de crianças. A cidade renova a frota de transportes públicos. Muda de prata para laranja a cor da iluminação ribeirinha. Quando Hermínia levanta a banca, começam fantasmando pela esquina outras mulheres para a repetição do óbvio.
9
Lá longe, o mar tem asma. Com dentes de espuma, o mar rói as falésias negras. Troca peixes por pescadores. Tabaco por marinheiros. Onda por onda. De onde está, Hermínia ouve o mar que nunca viu. É o vento nos cedros – é a mesma coisa.
10
Exactamente amanhã, Hermínia não vai montar banca na esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Amanhã há-de ser um dia histórico. Fora de todo o comércio, toda a esquina, todo o homem – Hermínia vai acordar perante o oceano verdadeiro. E perante tão descomunal alegria, o mais natural é que comece a rir-se e nunca mais pare.
À esquina da avenida Fernão de Magalhães com a rua Carlos Leite, na cidade que foi de árabes e depois do bispo Fernando, tinha banca montada ao ar livre uma mulher caolha chamada Hermínia Leite Magalhães. “Hermínia” como só ela, “Leite” e “Magalhães” como os nomes das artérias. Hermínia não tinha o olho esquerdo, mas tinha banca montada ao ar livre. Vendia flores, caixas de fósforos, velas, pagelas, pensos-rápidos e cigarros de contrabando.
2
Hermínia tinha vendido, em anos não bons mas – como sempre e com toda a gente – melhores do que os posteriores, sardinhas vivas na praça. Então, ela era uma das mulheres frescas e cantantes que cheiravam mais a peixe e a tostões do que a própria sardinha e o dinheiro mesmo. Deixou de poder arrendar a banca da praça quando o homem dela adoeceu do riso.
3
O homem de Hermínia cumprira o que era de homem. Trabalhara numa olaria de santos e jogadores de futebol em bonecos que ora rezavam ora rematavam. Uma tarde de trovoada, o homem de Hermínia deu de começar a rir baixinho e nunca mais parava, nem parou. Parou Hermínia. Cedeu a banca de sardinhas e deu-se a tratar do homem dela.
4
A história do homem de Hermínia é curta. Por ter enlouquecido, levaram-no. Ela ficou no casebre, atenta ao silêncio molhado que sempre impera depois de alguém se rir. Foi falar com um homem que contrabandeava cigarros, levou dois volumes a crédito, arranjou uma caixa vazia de ananás dos Açores e dobrou a esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Escolheu aquela esquina por causa dos nomes. Era como se fosse uma sociedade.
5
Os tostões tornaram-se suficientes. Não tanto pelo volume de vendas como pela vocação de conselheira que começou a exercer, sem saber quando nem porquê. Pessoas com problemas de azia, ou Zodíaco, ou mal de barriga, ou ciumentas – foi essa gente que pediu e pagou para ouvir Hermínia, cuja palavra acertava sempre no óbvio. E o óbvio era que a vida não podia ser pior do que a morte.
6
A vida não podia ser pior do que a morte – ou do que o riso sem razão. Nem do que a razão sem riso. A vida não podia ser pior do que a vida. As pessoas ouviam-na, compravam-lhe fósforos, cigarros americanos, padres-américos e flores vivas como sardinhas. E deixavam mais qualquer coisinha.
7
Hermínia mantém firme na esquina da Magalhães com a Leite. Já não tem muito tempo. Talvez mais três parágrafos, mas sem contar com este.
8
A vida é uma repetição de crianças. A cidade renova a frota de transportes públicos. Muda de prata para laranja a cor da iluminação ribeirinha. Quando Hermínia levanta a banca, começam fantasmando pela esquina outras mulheres para a repetição do óbvio.
9
Lá longe, o mar tem asma. Com dentes de espuma, o mar rói as falésias negras. Troca peixes por pescadores. Tabaco por marinheiros. Onda por onda. De onde está, Hermínia ouve o mar que nunca viu. É o vento nos cedros – é a mesma coisa.
10
Exactamente amanhã, Hermínia não vai montar banca na esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Amanhã há-de ser um dia histórico. Fora de todo o comércio, toda a esquina, todo o homem – Hermínia vai acordar perante o oceano verdadeiro. E perante tão descomunal alegria, o mais natural é que comece a rir-se e nunca mais pare.
Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006
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