19/10/2006

Uma mais Duas Medusas

Nasce escura de chuva a nova manhã.
Aves e árvores: tintas-da-China em pergaminho.
Solta o vento sua voz transparente.
Revoa a rua de folhas moribundas, lama
vegetal entorpece de cálcio a calçada.

Este é todo o tempo do homem.
Cargas de areia pingam de interstícios metálicos,
passando as camionetas do mundo civil.
Dentro do café vazio arrefece a velha.
Todos enviuvamos do dia de ontem.

Só as crianças são o apesar-de-tudo.
Ouço-as guelrando do escuro da sala.
Deito-me tarde e acordo cedo na antemão
do que já é. Oblongos canivetes d'água
talham figurinhas no ar de grés.

É bela, ó Mãe, a minha vida: linguajo
meteorologias, sejam mornas sejam frias
as manhãs, depois da tua pessoa. A vida
é boa - vê como gingam, marinheiros,
os castanheiros.

Este é todo o tempo do filho.
Tenho escrito histórias cada dia.
Desparadrapo-me das peias malévolas
de quem não sabe amar o tempo,
o Tempo. Eu tenho andado bem e muito.

Tenho o coração num alguidar, a faca
ao lado, na varanda. Quando diagonal,
a chuva demolha faca, alguidar e coração.
Do escuro da sala, dissipadas as crianças
sonoras que, como areia, pingues, passaram,

aqueço ao bafo dos meus versos o grés
humano da minha vida, hoje. Este é
todo o tempo do pai. As minhas meninas,
esses jogos florais que pratiquei em
duas noites espermáticas, sobem no ar.

Medusas a quem dedico estas quintilhas.
Portadoras de aquaçúcar óptico,
manuseadoras de tintas-da-China,
infantis velhotas da minha, um dia,
aposentação, quando de novo nascurecer.



Caramulo, há bocadito, tarde de 19 de Outubro de 2006

3 comentários:

Fanette disse...

"Os escritores raramente escrevem o que pensam. Limitam-se a escrever o que pensam que os outros pensam que eles pensam." E. Hubbard
Na apreciação do texto não me vou repetir.
Abraço

Manuel da Mata disse...

Os escritores romancistas escrevem histórias verosímeis, é verdade.
Os escritores poetas fazem como disse magistralmente o senhor Pessoa na autopsicografia.

Anónimo disse...

Poi eu penso (é a minha humilde opinião) que o Daniel - que escreve como poucos- se perde no estilo, por um lado, e , por outro, não faz como disse "o senhor Pessoa" no "Autopsicografia": refere-SE demasiado nos textos e a maior parte das vezes são mesmo autobiográficos, não "chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente". Muitos dos seus melhores textos são os que não são escritos na 1ª pessoa.
Apesar destes "reparos" ele é bom. E sabe que é. Eu nem faria "reparos" se não fosse.

Canzoada Assaltante