realizes na tua vida – a única.
No que sobra, usa lucidez.
O mundo é bonito e tem de
ser visto por ti.
Tu agora vais contar às pessoas
este mesmo anoitecer, queres?
– Quero.
Anoitece: quero dizer: cega o mundo.
Manhã muito cedo (eu recordo),
o mercado recebia (vivia de) velhas damas.
Tinham feito do céu um
armazém de cartão.
Nem o sol rompia.
Só a fé me dizia
que era dia.
Massa de plumbeágua.
Árvores lavajadas de morrinha.
Paredes de nariz picotadas de limão.
O meu corpo, de casaco negro,
corvoava no cartão terreno.
E viver era ameno.
De todo? Não.
A escassa vida sobrava-me de língua
– e isso me vale.
Depois, numa barraca sujeita à pressão
das eras e das heras,
comi um pão.
Um homem entrou antro adentro.
Trazia um idioma de trabalho
feito de manchas e sobras:
riscos de caligráfico cimento
na roupa, as mãos rebentadas
como minas ou esteiros;
e um apetite por peixe frito
que a patroa satisfez com
grão ensalsado, metades longitudinais
de batata e um ovo cozido.
O homem comeu, bebeu
uma garrafa negra como
a noite
que se pôs
na minha vida.
Eu vi tudo.
Então (mas eu tinha um livro
de 1920 para acabar de ler),
o sol engendrou o meio-dia,
a uma, as duas.
Uma pancada de água
fervilhou as parreiras, as latadas,
(as eras, as heras),
a pobre agricultura artesanal
que vive de ferros mágicos
no coração dos pessegueiros.
Eu cegamente quase nada,
excepto talvez a dor humana,
impressão minha, não talvez
de mais alguém.
Ainda assim, pergunto:
– De mais alguém?
Oh, mas é que festejam,
alhures, outras disposições;
e outros santos.
Faço sempre assim,
os dias todos.
Só os versos mudam.
Caramulo, anoitecer de 6 de Outubro de 2006
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