A transmitir entre as 22 e as 23h00
Rádio: Emissora das Beiras – 91.2 FM
Net: www.emissoradasbeiras.com
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1
Quem quiser levar para casa menos do que aquilo que trouxe, pode e deve vir à minha loja. Foi uma ideia boa que tive. Talvez tenha sido mesmo a única ideia boa que tive na vida. A loja chama-se Casa do Alívio. Fica aqui mesmo, onde e de onde vos falo – numa viela perfumada por mijo de gato e sangue cigano; num beco adormentado por garganta de fadistagem e ausência de sol. Casa do Alívio – ao Vosso dispor.
2
O cliente entra, examina à vontade a mercadoria exposta e faz ou não faz negócio. Eu é que sei, mas o truque é o cliente pensar que ele é que sim. Não é verdade, mas a Casa do Alívio também negoceia mentiras e derivados.
3
Uma ocasião, entrou-me pela loja uma senhora com uma proposta de considerável importância. Propunha ela que, em troca de todo o seu passado, eu a brindasse com algo de perfeita inutilidade mas que não pudesse ser dispensado. O passado dela cabia todo em duas caixas de sapatos vazias. Fiz-lhe então uma contraproposta irrecusável.
4
A senhora oferecia-me todo o passado dela. Eu tinha de entregar-lhe alguma coisa que fosse inútil e indispensável. Dei-lhe uma das caixas de sapatos dela. Ela perguntou-me:
– O que é que está aqui dentro?
E eu respondi:
– Aqui dentro está o futuro da senhora.
Ela saiu da loja com a caixa e nunca mais voltou.
5
Toda a gente sabe que é no Inverno que o mar mais falta faz. Estava eu a equilibrar uma prateleira com um calço de cartão, quando senti que a porta se abria a um espírito novo. Fui ao balcão e dei de caras com a alma de um marinheiro sem barco. E a alma foi direita ao assunto.
6
– Tenho saudades do mar, mas não tenho barco – disse o marinheiro.
E eu disse-lhe assim:
– Mas isso é um negócio fácil. Fico com as saudades que me traz. Agora, vê o senhor como chove lá fora? Estenda-se no chão ao comprido e apoie os pés no muro da igreja de S. Bartolomeu. O muro faz de barco. Como agora a chuva lhe há-de vir de lado, faz de mar.
7
O negócio tem-me corrido bem. Consegui contrariar, aliás, os maus augúrios do meu avô materno.
– Nunc’ádes ser nada – dizia-me ele, que jamais tinha sido coisa alguma.
Com o êxito da Casa do Alívio, posso responder-lhe hoje assim:
– Pois não, avô. Mas hei-de ser tudo.
8
O passado daquela senhora de quem vos falei, foi levado porta fora por um viúvo irremediável que se tinha esquecido por completo da falecida. Deixou-me ele, em compensação, uma resma de folhas de papel-químico.
9
Algum tempo depois, recebi, de novo, a visita do viúvo. Por instantes, tive medo de que, pela primeira vez na história da Casa do Alívio, um cliente não tivesse ficado satisfeito. Mas não. O caso é que o viúvo estava contente com o passado novo da sua defunta – só que não tinha saudades. Dei-lhe de borla as saudades do marinheiro, tal foi o meu alívio.
10
À noite, fecho a loja e fico exposto à incerteza de todo o comerciante quando volta ao estatuto de cidadão. Vou à rulote das bifanas, janto mostarda e cerveja e pago a despesa com uma das folhas de papel-químico nas quais, à transparência da contraluz, vou escrevendo e contando estas histórias.
Quem quiser levar para casa menos do que aquilo que trouxe, pode e deve vir à minha loja. Foi uma ideia boa que tive. Talvez tenha sido mesmo a única ideia boa que tive na vida. A loja chama-se Casa do Alívio. Fica aqui mesmo, onde e de onde vos falo – numa viela perfumada por mijo de gato e sangue cigano; num beco adormentado por garganta de fadistagem e ausência de sol. Casa do Alívio – ao Vosso dispor.
2
O cliente entra, examina à vontade a mercadoria exposta e faz ou não faz negócio. Eu é que sei, mas o truque é o cliente pensar que ele é que sim. Não é verdade, mas a Casa do Alívio também negoceia mentiras e derivados.
3
Uma ocasião, entrou-me pela loja uma senhora com uma proposta de considerável importância. Propunha ela que, em troca de todo o seu passado, eu a brindasse com algo de perfeita inutilidade mas que não pudesse ser dispensado. O passado dela cabia todo em duas caixas de sapatos vazias. Fiz-lhe então uma contraproposta irrecusável.
4
A senhora oferecia-me todo o passado dela. Eu tinha de entregar-lhe alguma coisa que fosse inútil e indispensável. Dei-lhe uma das caixas de sapatos dela. Ela perguntou-me:
– O que é que está aqui dentro?
E eu respondi:
– Aqui dentro está o futuro da senhora.
Ela saiu da loja com a caixa e nunca mais voltou.
5
Toda a gente sabe que é no Inverno que o mar mais falta faz. Estava eu a equilibrar uma prateleira com um calço de cartão, quando senti que a porta se abria a um espírito novo. Fui ao balcão e dei de caras com a alma de um marinheiro sem barco. E a alma foi direita ao assunto.
6
– Tenho saudades do mar, mas não tenho barco – disse o marinheiro.
E eu disse-lhe assim:
– Mas isso é um negócio fácil. Fico com as saudades que me traz. Agora, vê o senhor como chove lá fora? Estenda-se no chão ao comprido e apoie os pés no muro da igreja de S. Bartolomeu. O muro faz de barco. Como agora a chuva lhe há-de vir de lado, faz de mar.
7
O negócio tem-me corrido bem. Consegui contrariar, aliás, os maus augúrios do meu avô materno.
– Nunc’ádes ser nada – dizia-me ele, que jamais tinha sido coisa alguma.
Com o êxito da Casa do Alívio, posso responder-lhe hoje assim:
– Pois não, avô. Mas hei-de ser tudo.
8
O passado daquela senhora de quem vos falei, foi levado porta fora por um viúvo irremediável que se tinha esquecido por completo da falecida. Deixou-me ele, em compensação, uma resma de folhas de papel-químico.
9
Algum tempo depois, recebi, de novo, a visita do viúvo. Por instantes, tive medo de que, pela primeira vez na história da Casa do Alívio, um cliente não tivesse ficado satisfeito. Mas não. O caso é que o viúvo estava contente com o passado novo da sua defunta – só que não tinha saudades. Dei-lhe de borla as saudades do marinheiro, tal foi o meu alívio.
10
À noite, fecho a loja e fico exposto à incerteza de todo o comerciante quando volta ao estatuto de cidadão. Vou à rulote das bifanas, janto mostarda e cerveja e pago a despesa com uma das folhas de papel-químico nas quais, à transparência da contraluz, vou escrevendo e contando estas histórias.
Caramulo, 27 de Outubro de 2006
(para a minha Mãe)
(para a minha Mãe)
1 comentário:
Daniel:
Gosto de surpresas! Estava eu a ler o último post do blog "Obvious" e, em rodapé, havia uma dedicatória - a postagem era dedicada a alguém... Abri - e tu apareceste-me assim, em letras, palavras, frases, textos, obra!
Parabéns pelo teu trabalho que regista um quotidiano de atenção ao que parece lateral, sem nunca o ser.
Bom trabalho!!! Se quiseres, continuo em www.reginachocolate.blogspot.com
Com estima,
Maria Laranjeira
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