Esta noite, entre as 22 e as 23h00 em 91.2 FM ou, pela net, em http://www.radio.com.pt/ (Distrito Viseu, Concelho Tondela, Emissora das Beiras)
1
O Purgatório pode ter sido abandonado pela Igreja como apeadeiro entre o Céu, a subir, e o Inferno, a descer. Mas não foi abandonado pelos homens nem pelas mulheres que vivem na serra. Porque, na serra, o Purgatório chama-se – Nevoeiro.
2
Ou o Céu desce ou a Terra sobe. Ou ambas as coisas, num beijo húmido, gasoso e meteorológico. Mas o resultado é mais do que simples névoa. É uma luz glauca onde as pessoas, os animais e as árvores se tornam fantasmas. E onde os fantasmas se tornam árvores, animais – e pessoas.
3
O nevoeiro cerra a vida, o dia e a noite. Não há para onde ir, não há de onde vir. Estamos e somos. E depois perdemo-nos no nevoeiro.
4
Há homens que se perdem. Enganam-se nas portas. São electricistas e entram nas lojas. Trabalham ao balcão, atendendo ninguém. Há mulheres que se perdem. São cabeleireiras e entram nos Correios. Vendem selos aos fantasmas da tuberculose que há quarenta anos não escreviam para casa.
5
Eu trabalho na rádio, mas já me aconteceu passar noites seguidas na padaria embrulhando farinha e lume num ritual antigo e desolado. Quando faz sol, volto para casa com uma história atrasada.
6
Dois amigos do meu vizinho tiveram a ideia de visitá-lo. Estava um nevoeiro completamente purgatório. As almas tinham operado a substituição dos pássaros. Os dois amigos perderam-se, tiveram de trabalhar quatro dias como electricistas e só abandonaram esta história quando fez sol.
7
A chuva é uma coisa completamente diferente. Também se trata do Céu a descer, mas já não da Terra a subir. Quando chove, a Terra aguenta firme. Pessoas, animais, árvores e fantasmas molham o pescoço, encharcam a boca e tremem a partir dos pés. Mas é diferente.
8
Nós estamos aqui à espera do sol para que nos seja possível voltar a casa, depois ao trabalho, depois ao café – e depois a casa. Acreditamos naquilo que a vista nos nega – o Céu e o Inferno. Mas é nossa condição o Purgatório.
9
Em casa, cerramos as persianas, trancamos os caixilhos, ferrolhamos as portas e abrimos o lume. Ingerimos devagar o caldo nutritivo. Guardamos as sobras do pão. Acumulamos bolachas e latas de sardinha. Estamos preparados para tudo.
10
Estamos preparados para tudo – até que o nevoeiro volte com suas amáveis mandíbulas. Em casa, ao lume, revistamos postais das Antilhas que os electricistas da terra, por se terem enganado de porta, puderam frequentar sem ofensa e sem memória.
Caramulo, noite de 16 de Outubro de 2006
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