É muito mais fácil estar vivo do que ser infeliz. Ah sim, eu acho que sim. A sério que acho que sim. Ainda ontem tive mais uma prova. Apareceu aqui na vila uma carrinha do ministério da Saúde. Era para fazer consultas de borla. Consultas ao sangue, ao coração, aos olhos e à cera dos ouvidos. Apareceram uma data de velhos à porta de lado da carrinha. Pareciam-me felizes, aqueles homens e aquelas mulheres. Devia ser por estarem vivos.
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Eu não. Quer dizer, estou vivo, mas o meu trabalho não me permite aproveitar coisas boas como esta carrinha com um médico de borla. Ninguém se interessa muito pelo meu trabalho, mas como hoje me deixaram falar na rádio, aproveito e falo. Ah pois sim, eu acho que sim!
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O meu trabalho é pintar de azul o que é verde, de castanho o que é branco e de verde o que é castanho. De modo que tenho trabalho para sempre. Só não tenho tempo para ser infeliz. Nem para o oftalmologista itinerante.
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Gosto do meu trabalho. Eu quase que ia dizer – gosto da minha vida. Mas julgo que não é preciso exagerar. Eu nunca exagero: se uma coisa é verde, torno-a azul. Só azul. O azul é quanto chega. Eu acho que sim, que chega.
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Uma das mulheres teimou que o café fazia mal. Começou a dar chá. Só dava chá. Alguns diziam “café”. E ela dizia “está bem” e botava-lhes chá. Ainda não a despediram do Lar. Deve ser sobrinha da doutora. Eu não sei. Eu não me meto nessas coisas. O chá é castanho. O leite é branco.
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Também faço outras coisas. Não é bem “fazer”, mas não tenho as palavras todas, por isso escrevo. A outra coisa que, por assim dizer, faço, é recordar bocados de coisas. O bocado do homem que descobriu um bocado de Creta. O bocado de uma festa de aniversário de aniversário de casamento, já nenhum dos dois noivos velhos mora aqui connosco.
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Quando chove, não nos deixam sair. Não nos proíbem, fecham só tudo o que seja abertura. Eu não me importo. A chuva já não me faz recordar nada. Por isso, torno azul o que era verde, castanho o que era branco, verde o que era castanho. Tenho lápis que dão até ao fim da vida.
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As mulheres põem água no branco. A gente tira os dentes e morde o pão com as mucosas. Está sempre a rádio a tocar (logo vou ouvir-me nela), algures. Há música por todo o lado. Depois, uma vez por mês, temos de fingir que somos crianças. É quando vem a família. A família é verde.
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A semana passada, era bom ir no autocarro ver ranchos. Agora já não é bom. Já não gosto. Não me importo que assem castanhas no Outono e que, logo a seguir, estraguem algodão (que é branco) e musgo (que é verde) por causa do presépio. A música dos ranchos corta como vidro, às vezes.
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O senhor está bem? A senhora está bem? Estamos-sim-senhores-muito-obrigados. E sentem-se felizes aqui? Olhe, menina, também não é preciso exagerar. Estamos vivos, não estamos? O que é que é preciso mais, diga-me lá? Só se for chá.
Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006
2 comentários:
"O senhor está bem? A senhora está bem? Estamos-sim-senhores-muito-obrigados. E sentem-se felizes aqui? Olhe, menina, também não é preciso exagerar. Estamos vivos, não estamos? O que é que é preciso mais, diga-me lá? Só se for chá."
Para uma pergunta parva uma resposta inteligente em humildade.
Fabulosamente lindo!
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