Esta noite, em 91.2 FM ou, pela net, em http://www.radio.com.pt/ (Distrito Viseu, Concelho Tondela, Emissora das Beiras)
Fazenda Caramulo
1
Era um homem para quem até o dia de hoje pertencia a outro tempo. Usava olhos castanhos e sapatos pretos. Limpava as unhas com um escrúpulo de joalheiro. Conhecia o País de norte a sul porque era representante de uma casa de fazendas. Não precisava da agenda para reconhecer um alfaiate pelo primeiro e último nomes. Ele não tinha nome: era “o homem das fazendas”.
2
Nos primeiros anos, viajava de comboio, tendo assim adquirido a noção de que tudo só existe na volta. Depois, a firma entregou-lhe um carro. A viatura tinha pintada nos flancos de lata esta declaração de guerra:
CASA RAMIRO, FILHO & RAMIRO
FAZENDAS AS MELHORES
DESDE 1898
3
O viajante de fazendas, sozinho ao volante do automóvel, dava-se às vezes ao luxo pobre de inventar para si mesmo outras datas de nascimento. Ele podia ter nascido em 1898, como a firma que representava. Também podia ter nascido em 1911, ano da primeira Constituição depois da monarquia. Ou nove anos depois disso. Ou amanhã – ele podia ter nascido amanhã.
4
O problema era que o dia de hoje se parecia mais com o passado até que o próprio ontem. Ao volante do automóvel, ele ligava Portel a Arraiolos numa tarde de calor insuportável. Depois (ou antes), fazia Covilhã-Guarda como quem bebe um café frio. E a vida, ao contrário das melhores fazendas, não tinha cortes.
5
Para a frente e para trás, anos passaram. A mortalidade infantil baixou nas estatísticas. A balança de pagamentos constipou-se na humidade da tinta dos jornais. Um cantor famoso morreu atropelado por um cidadão anónimo. E na Coreia do Sul continuaram cozinhando cães como nós aqui coelhos.
6)
Certa manhã de primavera, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, conferiu a gravata no espelho retrovisor e deu de caras consigo mesmo. Era a primeira vez que tal acontecia.
7)
Não aconteceu, no imediato, nada de especial. No dia seguinte, como tantos ontens tinha já acontecido, almoçou em Viseu, atento, pela vidraça da casas de pasto, à semelhança dos padres a peões de xadrez amaneirados de bispos.
8
Certa manhã de primavera, no entanto, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, mas não precisou de levar três dedos à gravata para saber de antemão quem o esperava no espelho retrovisor.
9
Deixou de ser ele-mesmo. Também deixou a pasta de amostras no banco de trás e a chave na ignição. Em vez de subir dezoito metros até à alfaiataria do senhor Mendes (Albino Mendes – Fatos por Medida desde 1964), ele desceu catorze anos para sul, cortou à esquerda cinco invernos e ficou sem saber que fazer perante o mar.
10
O representante de fazendas teria talvez desaparecido para sempre se não fosse o caso de a nossa reportagem ter dado com ele a pedir cigarros na vila do Caramulo. Era em frente à extinta Pensão Central. Perguntámos-lhe que coisa fazia ele ali.
E ele respondeu:
– Estou à espera que seja outra vez 1920. Tem um cigarrinho?
– Não, mas posso sempre passar por cá amanhã.
Era um homem para quem até o dia de hoje pertencia a outro tempo. Usava olhos castanhos e sapatos pretos. Limpava as unhas com um escrúpulo de joalheiro. Conhecia o País de norte a sul porque era representante de uma casa de fazendas. Não precisava da agenda para reconhecer um alfaiate pelo primeiro e último nomes. Ele não tinha nome: era “o homem das fazendas”.
2
Nos primeiros anos, viajava de comboio, tendo assim adquirido a noção de que tudo só existe na volta. Depois, a firma entregou-lhe um carro. A viatura tinha pintada nos flancos de lata esta declaração de guerra:
CASA RAMIRO, FILHO & RAMIRO
FAZENDAS AS MELHORES
DESDE 1898
3
O viajante de fazendas, sozinho ao volante do automóvel, dava-se às vezes ao luxo pobre de inventar para si mesmo outras datas de nascimento. Ele podia ter nascido em 1898, como a firma que representava. Também podia ter nascido em 1911, ano da primeira Constituição depois da monarquia. Ou nove anos depois disso. Ou amanhã – ele podia ter nascido amanhã.
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O problema era que o dia de hoje se parecia mais com o passado até que o próprio ontem. Ao volante do automóvel, ele ligava Portel a Arraiolos numa tarde de calor insuportável. Depois (ou antes), fazia Covilhã-Guarda como quem bebe um café frio. E a vida, ao contrário das melhores fazendas, não tinha cortes.
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Para a frente e para trás, anos passaram. A mortalidade infantil baixou nas estatísticas. A balança de pagamentos constipou-se na humidade da tinta dos jornais. Um cantor famoso morreu atropelado por um cidadão anónimo. E na Coreia do Sul continuaram cozinhando cães como nós aqui coelhos.
6)
Certa manhã de primavera, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, conferiu a gravata no espelho retrovisor e deu de caras consigo mesmo. Era a primeira vez que tal acontecia.
7)
Não aconteceu, no imediato, nada de especial. No dia seguinte, como tantos ontens tinha já acontecido, almoçou em Viseu, atento, pela vidraça da casas de pasto, à semelhança dos padres a peões de xadrez amaneirados de bispos.
8
Certa manhã de primavera, no entanto, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, mas não precisou de levar três dedos à gravata para saber de antemão quem o esperava no espelho retrovisor.
9
Deixou de ser ele-mesmo. Também deixou a pasta de amostras no banco de trás e a chave na ignição. Em vez de subir dezoito metros até à alfaiataria do senhor Mendes (Albino Mendes – Fatos por Medida desde 1964), ele desceu catorze anos para sul, cortou à esquerda cinco invernos e ficou sem saber que fazer perante o mar.
10
O representante de fazendas teria talvez desaparecido para sempre se não fosse o caso de a nossa reportagem ter dado com ele a pedir cigarros na vila do Caramulo. Era em frente à extinta Pensão Central. Perguntámos-lhe que coisa fazia ele ali.
E ele respondeu:
– Estou à espera que seja outra vez 1920. Tem um cigarrinho?
– Não, mas posso sempre passar por cá amanhã.
Caramulo, tarde de 9 de Outubro de 2006
2 comentários:
Tenho mesmo que arranjar um vagar para o vagar de te ler... soube-me muito, muito bem o que li. Fico com esta reserva de supresa para vir disfrutar um destes dia. Gostei. Muito, acho. Depois confirmo.
Bela reportagem. Bom regresso ao passado.A nossa história de verdade.
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