93.
ISTO ASSENTE
Coimbra,
sexta-feira, 3 de Julho de 2020
I
De
ontem para hoje, o mundo não melhorou nem grande nem pequena coisas. Pode ser
que melhore logo, quando me sair o jackpot do euromilhões. Enquanto não,
giro: de gerir & de girar: o dia. (...)
II
Celebro
de antigos nomes a emissão ’inda luminosa.
Bosquejo
íntimos sentidos que a atenção desfragmente.
Já
joeirei muito, muito ’inda me falta, felizmente.
A
vida que se tem, não há outra, esta é a preciosa.
Certas
figuras configuraram em obra praticada o mundo.
Cada
uma delas, cada mundo antigo renovado.
Joyce,
por suíças, áustrias & franças, é Irlanda.
Lisboa
é Pessoa, capital dos impérios todos.
Isto
assente, há que continuar por Coimbra-em-acto.
Vi
há pouco filmagens do Palácio da Justiça.
Recordaram-me
certo domingo, certa pomba morta na rua.
As
vísceras dela, comeram-lhas as irmãs, rica família.
Outra
filmagem: d’algures-França, caminho entre montanhas.
Belíssimo
ribeiro abrindo em cristal tal garganta.
A
França-Natural é belíssima – e mais nunca lá fui.
Também
já não devo ir, a não ser pela livralhada.
Vêde
comigo: estiola-se sem leitura a memória.
Memória
é releitura, sei bem que fantasiosa muita vez.
Mas
é releitura – e portanto reescrita-em-acto.
Coimbra
amanhã há-de ler-se hoje, que ontem escrevivi.
Fala-se
agora do calor que aí vem.
Infeliz
realidade, para mim muito infeliz.
Quarenta
graus são um crime.
Se
eu mandasse, decretaria dez meses invernosos por ano.
Não
mando senão neste caderno.
Aqui
posso algum refrigério contra a exterior fornalha.
Febre
viral & coma calorífero?
Versos,
versos & versos & mais versos.
Alguém
há-de sobreviver.
A
começar por alguns mortos, alguém há-de sobreviver.
Em
quintas fechadas, alguns ingleses vínicos.
Em
cabanas remotas, alguns noruegueses frígidos.
Lembro-me
daquele homem passeando-se de cão em Th. Mann.
Daquele
biólogo marinho no bairro-de-lata steinbeckiano.
Da
furiosa realidade psicológica do criminoso dostoievskiano.
Da
mais elegante inteligência geminada em Calvino & Cortázar.
(...)
À
cabeceira da moribunda & minha Tia Maria, outrora.
Ela,
por materno lado, e meu Tio Alberto, pelo paterno, caramba:
Rainha
& Rei foram da mais extrema solidão arquetípica.
Modelos
especulares das estrelas-cadentes, terminais.
Mui
carinhosamente os repesco a ambos à vida possível.
Fundem-se-me
muito, ela & ele, com autores venerados.
Tal
mescla mente-memorial não é fantasiosa.
A
solidão de Fernando Pessoa & a de meu Tio Alberto são irmãs.
Anoto
a condição das condições limítrofes.
Algo
de Van Gogh no senhor meu Pai: par’além até da pintura.
Algo
de Madame Curie na inventividade da senhora minha Mãe.
Faço-o
sem receio de (a)parecer ridículo a olhos ignaros.
Ocasiões
há em que os sentidos a si mesmos festejam.
Alguma
minuciosa alegria os move em harmonia.
Instantes
são de uma paz inconsútil, meritória.
Entram
na honra portátil da pessoa, são iluminações.
Faço
por manter guardados os melhores bocados.
(Mas
olhai que aos piores também, há que notá-lo.)
A
sós no virente prado, tasquinha sem pressa o cavalo.
Eu
guardo tais litografias de belos cavalos em belos prados.
Barroco
& neo-realismo, tudo conta, faz parte tudo.
Assim
também os quartos tão sós do celibatário Pessoa.
No
fim, conta o que ficou escrito, gravado em pedra-papel.
É
essa a herança em vigor enquanto respira(r)mos.
Cultores
da rosa simples, almas capazes de dar os bons-dias.
Sim,
alguma permanência vem sendo praticada em séculos.
Resgato
da lama infecta quanta posso enquanto posso.
Não
é fácil nem difícil tarefa: à sua autoridade adiro.
Funcionamos
indivisíveis relógios pré-cadaverescos.
Todo
um reino atapetamos de irremediáveis grinaldas.
Nasce-se
& morre-se poluindo fraldas.
À
sombra de latadas, os mais cautos ingerem refrescos.
Ainda
há pouca meia-hora viajei por velho livro.
Pequeno,
largo, pesado volume ele é - & delicioso.
Nomes
& datas profusamente ele inscreve, o bem-dito.
Folheio-o
ainda, enternecido como neto da avó ouvinte.
À
claridade greco-algarvia não acedo há muito.
Tenho
ficado por aquis nem sempre acertados.
Não
resmungo sobre esses anos malqueimados.
Mais
siso hei mudando cerce de assunto.
Azul
azulejo cujo branco congrega toda a côr.
Palácio
sem portões com galo-dos-ventos.
Raros
transeuntes silhuetando o fio poente-horizontal.
Nenhuma
lamúria, nenhuma vertente suicidária.
Este
não é ainda o Quarto n.º 13 do Hotel de l’Étoile.
Isto
não é Bougie, ali ao costado mediterrânico-argelino.
Teixeira
Gomes venero de modo outro, em respeito.
Dele
as claras linhas resgato à cegueira em que morreu.
Doçura
crepuscular, demando-a sozinho sem pressa.
Vou
apalaçando o meu deserto escorando-o de vocábulos.
Vocábulos
próprios & alheios em agitada algaraviada.
Faço
de amanuense, secretario lances bonitos.
Feios
também. É passível de literatur’arte tudo.
O
hediondo & o formoso. O obsceno & o lavado.
Chega
a ser majestático: o alto-arbítrio (do) redactor.
Consola
ser disso seguro – ao menos disso.
Consola
por igual a bondade (herdada) para com os animais.
Humaniza
muito mais do que ajoelhar na missa.
Ou
do que lamber a bota ao amo ofici(n)al em vigor.
Ou,
até, do que escrever versos infinitos finitamente.
(...)
Verdade
que prefiro a chuva, mas não se me desdenh’ a luz.
Certo
tipo de claridade refunda o ser em marcha.
Quando
desço o monte de ter ido aos figos.
Quando
colho espargos ou boas páginas abertas.
Tudo
ensina grandemente a nossa pequenez.
A
Poesia não é arte que se empreste, é de dar-se.
Certas
rimas forçadas entravam a catarse.
O
próprio azeite não escapa a certo grau de acidez.
Vi
longes que à minha maneira volvi pertos.
Não
fui em demanda de mercês, não sei aliás pedir.
Vou
mais a funerais do que a baptizados.
Não
tem que ver com religião, bem antes pelo contrário.
A
palavra solta não conhece muros nem barreiras.
É
preciso apenas que nos não colida a analf’ignorância.
Entre
bípedes & o mim cavo a mor distância.
Sim,
sei o que digo: digo palavras certeiras.
Desprezo
profundamente ter-me dado a desbaratos.
Demorei
muito tempo, mas volvi-me alfaiate.
Com
giz & tesoura assino os meus mesmos fatos.
Peço
pano a ninguém, esmolar é disparate.
(...)
Pois
não se trata de enciclopediar comportamentos.
Comece-se
antes por não poluir de lixos a terra.
Seja-se
cordato na frase, limpo de unhas.
Propicie-se
o aprender – e livre-curso ao prazer.
Eu
sei que é escusado andar por aí ruybelando.
O
mais certo é o pacóvio ’inda ficar ofendido.
Pode
comer-se-lhe a mulher, mas não clube ou partido.
Eu
sei que é escusado andar por aí perorando.
Depois
de décadas de paroquiana TV público-única?
Vieram
as chungas das cacas privadas.
Nunca
as retretes foram tão ocupadas.
A
merda é pertinaz & contumaz & cínica.
Paciência.
Caligrafe-se a vida em outra direcção.
Baixinho
já ao recanto rumoreja a orquestra.
O
maestro faz de espaventosa abelha-mestra.
E
as cordas mui zunem boa afinação.
Morreu
Manuel Cintra este ano.
Tenho
ali um livro dele.
Do
pai dele também tenho.
São
de riscar-se unha em pele.
(Sonhei
com o Luís Manuel Vide Miranda.
Mês
que vem, faz um ano de falecido.
Rimo-nos
no sonho, não sei de que coisa miseranda.
Despertei
apertado, triste & compungido.)
(O
meu Gato espreguiça-se, é bonito de ver-se.
Boceja
sem fundo, de paz saciado.
Pisca
só de um olho, todo a derreter-se.
É
como se renascera, pronto & preparado.)
(...)
Quando
lia o Enoch Garden, certa perdida sexta-feira?
Isso
foi há tempo, rés a uma mesa de ingleses.
As
misses tomavam, curando bebedeiras,
lusas
águas minerais, que eu também tomo por vezes.
Já
os misters abocavam porto & cerveja
sem
ter nada ar de frequentar a igreja.
Louros
rubicundos, eram sobranceiros:
preferi-lhes
o Tennyson dos versos porreiros.
Isso
passou. Tenho depois nove anos, vou com o Armando.
Era
na Vinha do Faria, mui antes dos prédios serem ali feitos.
É
agora tudo depois de tudo, prédios & tudo.
Menos
de amanhã.