10/07/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (15)

15

Pombal, tarde e entardenoitecer de 8 de Julho de 2009

Isto não anda bom nem para os deuses da chuva, mas isto é quanto temos.
A minha andança circunscreve as coisas que a atenção cria.
Contam as coisas atentas, o massacre de 28 de Abril de 1996 (31 mortos, 21 feridos) na histórica e australiana cidade de Port Arthur, a lavagem manual das chávenas no café de pobres do bairro de pobres, as muitas voltas que o guitarrista Eric Clapton terá dado já à vida como ao mundo - isto conta.
Conta: a minha bisavó materna Deolinda da Conceição, que enlouqueceu de dor pela perda de uma filha de dez anos de idade, Glória de seu nome.
Conta: esta tarde mesma, grande e amarela e branca como a bandeira eleita do Estio.
Conta: a essência por assim dizer sinfónica do pensamento, capaz de justapor o sabor do fruto à esfera que torna pandas as cortinas da sala, a técnica do assador de peixe à rotina do lavador de chávenas, a visão calada do casal de idosos na Estrada de Benfica à exposição de fotografias de guerra num bar-galeria.
Conta: simular a fadiga do médico ao fim de extensa e intensa jornada de trabalho - e cotejá-la com a fadiga do calceteiro ao cabo de similar circunstância: simular o similar.
Conta: a tarde do dia 7 de Maio de 1976, no quintal subido pelo pessegueiro, entre lixos humildes e cães pessoais.
Conta: ter estado em Caminha como em Vila Real de Santo António, no Luso como em S. Bernardino, em Odivelas como em Esposende, em Elvas como em Barcouço, na Chã como em Campo de Ourique.
Conta: saber detalhes mínimos das existências que vemos arder, como a do vendedor de peças para automóvel que viaja à comissão pelas sempr’iguais zonas industriais da modernidade, a do antigo pianista de casino alvejado em cheio pelo alzheimer da moda, a da recepcionista de consultório de dentista que vive sozinha num apartamento vão e vasto como uma praia no inverno, a do guarda diurno de centro comercial que à noite assalta moradias desabitadas de emigrantes, a do ajustador de pratas de maço de tabaco que acredita num prémio do Banco de Portugal para o primeiro totalista de meia tonelada de prata, a do casal de idosos da Estrada de Benfica.

Por mim, cuido que uma vida mormente dedicada ao estudo, ao conhecimento, à prática e à assimilação da poesia deve poder-se capaz de sustento de deuses da chuva, por exemplo. Digo isto assim porque posso.
Porque finalmente posso.
Atingi o cerne da minha mesma desimportância, de onde resulto transitório como um budista.

Prédio rosa.
Prédio azul.
Sem mim, este prédio é rosa, azul aquele?
Sem a minha atenção, há cor, há bairro, há mundo?
Este prédio é rosa que evanesce, aquele é de um azul pueril, igual ao das capas de um caderno que tive em 1980-81, decorre uma aragem panda de entardenoitecer de Julho, vou sendo em atenção.
Já a noite estendeu sua seda, seu táctil damasco, mas não sei se a crio se a creio.
Que levarei para casa?
Tudo o que temos em comum será a data?
Poderão as nossas atenções ser circunscritas por, digamos, a poesia?
Isto pensa-me.


1 comentário:

isabel mendes ferreira disse...

e sempre um pouco mais de um agora a ser palavra. alta.





cumprimentos.

Canzoada Assaltante