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Pombal, manhã de 27 de Junho de 2009
Manhã, território nacional mais instante.
Mãe e filho pequeno acampam na pastelaria da esquina para leite e bolos. A divorciada do terceiro-andar veio a café e quatro pap’secos para levar. Poucos carros pela rua, cuja frescura confirma o sol nascido para todos nós.
Ao cabo de uma noite sem guerra, despertar é renascer contemporâneo do mundo, é merecer a nacionalidade comum da luz, da rua, da luz da rua, de suas árvores sinaléticas, suas tomadoras de café-com-leite, seus ociosos automobilistas sem pressa, seu pão novo.
O jornal dá crimes frescos de anteontem, macrogolpadas da finança, anúncios com sotaque tropical (putas e espíritas), contratações irrelevantes de jogadores irrisórios de terceiríssimo escalão, opiniões colunistas, fotografias que labaredam o Tempo em silhuetas de gás. Mundo dentro de mundo dentro da cabeça: visto de cima: telhado de prédio, toldo da pastelaria, segunda mesa à esquerda de quem entra (mãe e filho na primeira à direita), homem com jornal, crime da quarta página.
Pequenos planos para o futuro breve: extracção de um queixal (e dinheiro para isso), leitura do Cândido de Leonardo Sciascia, conclusão da formação de formadores, algum domingo de Julho dado à praia. (A questão do dente é importante.)
Por abertas da muralha da comunicação, acesso a entreluzes do saber: três tipos de escrita, profilaxia da doença (aparelho digestivo), desenho/engenharia/maquinação assistidos por computador (para moldes industriais), crianças e jovens em risco, três tipos de aço (austenítico, ferrítico e martensítico), medição da glicemia, análise de riscos e controlo de pontos críticos de uma fabricação (HACCP), vitrinismo/decoração de montras, conversão do número 3 na base 10 para o número 3 na base 2.
Por feixes de luz, coruscação de pontos-palavras em liberdade:
jade, zoeira, madeixa, resto, sucinto, jacinto, dia(positivo), estampa, carta, camisa, caligrafia, antiguidade, tira, nervosismo, fenómeno, afectação, dúvida, ametista, devaneio, ouvido, insegurança, idade, alimento, interesse, tema, gnose, esquelético, finalização, alerta, civismo, realidade, curso, apresentação, contágio, interlúdio, serviço, mescla, objectivos, estatístico, México, ovular, público, exposição, projecção, actividade, avaliação, problemas, processamento, base, exemplos, âmbar, item.
Segmentos-frases:
estes dois são seguramente
depende da versão
não é um bom carácter
para quem como você tem uma
vamos então nós fazer uma paragem
isto é tudo para promover a loja
há vitrinistas que vão fazer montras de farmácia
por vezes vamos a passar e nem estamos a precisar
vai dar a parte prática com coisinhas simples
dependendo dos temas que estão em vigor
idealizar o cenário, conjugar cores
mais à frente vai ser tratado
o 14 de Fevereiro
verde, amarelo e vermelho
relação marca-preço
deve aparecer ao fundo
por lei são obrigatórios
por tudo isto estão 50 por cento de oportunidades de o cliente entrar
não conjugar roupas com produtos alimentares
isto é um bocado apertado
capacidade de liderança
diga, que é que quer!?
nesta área já existem empresas
artes de andarilho à segunda-feira quinze minutos
muito bem
estava a dizer mas é mesmo verdade
para criar ali uma actividade, no fundo
cada fotografia tinha a ver
foi tudo homogéneo
de que é que acham que vamos aqui falar?
eu noto aqui nas maçãs do rosto
.
A matéria verbal do nosso mundo é infinita. Viajar pelos documentos do dia aumenta o dia no espaço-tempo. Propicia a universalização do detalhe compreendido, justaposto, equivalido, relatado e relativo. A viagem oriental de Eça, Nobre em Paris, Faulkner em Hollywood, Lawrence arabizando-se nas areias quentes, Lutero catalogando Erasmo, Mishima e Pasolini, Sciascia e Alvaro: filmes paragráficos, lances dinâmicos da câmara verbal, infinitas possibilidades de combinação narrativa, multiplicação de efeitos especiais tais como a interpenetração de dados biográficos com mitografias topónimas (o deserto, Lawrence, Jerusalém, Eça, Nobre em Hollywood etc.).
Recta de uma estrada de campo. Choupos, amieiros, faias, pinheiros, salgueiros. Grandes tardes de água, invernos panorâmicos (para dentro), maiores do que a soma das vidas. Crianças sustentadas a pão e a favas, anos 20 do XX. Animais cheios de frio correndo campos. Em outros anos, não agora, agora é escrever a seu lume. Hoje é esta manhã vinda indo-se. Hoje é agora a vida ainda. Agora, agora, em breve, um pouco antes de amanhã.
1 comentário:
«Hoje é agora a vida ainda. Agora, agora, em breve, um pouco antes de amanhã.»... sim é bom lembrar que ainda não é amanhã, esquecemo-nos muito do Hoje.
«A matéria verbal do nosso mundo é infinita.» e não é que é verdade? E fecunda também! Deliciosos fragmentos.
Só para não andar aqui a ler os diários dos outros e nem sequer agradecer a partilha! Portanto: bem haja e boa continuação.
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