Vale muito a pena ir lendo os livros anteriores a tudo isto.
Isto: esta gente.
Aprender a língua de cá e as outras que por aí andam - vale a pena.
Sair, ir ver o mar, dar uma volta boa pelas cidades outonais que restam, consultar a Primavera possível da luz.
Criar os filhos à imagem e semelhança deles mesmos.
Saber algumas coisas, o porquê dos nomes das ruas, os tipos de árvores que por aqui se dão melhor, guardar os rios da fobia e da avidez suinícola.
Ser eólico, cada um por si a favor do outro.
Estimar o velho que se vê passar aturdido pela pressa do Tempo.
E devolver os cornos a quem no-los põe, em democracia.
Também vale a pena ter pena da pobre gente.
Dessa que não vai ao teatro saber o que fazem as pessoas-personagens.
Dessa que é pobre de bmw por todo o lado.
Dessa que, coitada, nos quer em outra ortografia, outro desespero, outra nova oportunidade perdida.
Vale muito a pena sabermo-la irremediável, triste, bacocazita, suicida defecadora de giletes.
Gosto do nosso descalabro pátrio.
Diverte-me - e é que já vou estando em idade de me não importar doentiamente com a saúde.
Ontem à noite, até interrompi a leitura da poesia de José do Carmo Francisco e de Luís F. Adriano Carlos para ver aquele menino-ministro a fazer aquilo com os dedos na Assembleia "abúlica", como lhe chamou o poeta João Apolinário.
Tenho medo de que não valha muito a pena saber o bom e o mau das coisas.
Sei que vale, mas receio que se não dê valor a saber.
Saber o bom e o mau, o que é uma igreja bem iluminada, um bairro bem ordenado e com árvores e assim.
Conhecer para além do preço das bananas, distinguir a colonização da Nova França de uma caixa de sapatos vazia.
Conhecer que é mais grave a pianista Maria João Pires renunciar à cidadania portuguesa do que as eleições do Benfica.
Também seria bom que nos não pusessem tanto os cornos.
Não espero já que nas escolas a juventude identifique o retrato do senhor Alexandre Herculano.
Espero tão-só que as minhas filhas sejam felizes todos os dias, mesmo quando o dia não for feliz, mesmo quando, sozinhas e por si mesmas, descubram a fundamental infelicidade do País em que nasceram.
Gosto das minhas filhas - como toda a gente gosta dos filhos de que foi capaz.
Não gosto do brasil-ao-contrário da língua falada nas retretes televisivas.
Quase me ri, quando vi a Bethânia com o Marco Paulo cantando compungidamente em Fátima.
Quase já não tenho tempo senão para ser sincero.
Não tem importância que o Joaquim de Almeida, coitado, ganhe a vida a fazer de Nicolau Breyner em Hollywood.
Importância nenhuma.
Nem que o País quase lacrimeje de orgulho a ver aquele rapaz do nariz chamado João Garcia a subir montanhas em vez de traballhar qualquer coisita para o PNB.
Estas coisas fazem parte, elas existem com o mesmo direito natural à estupidez que nos subjaz a todos.
É como chamarem "escritor" ao Peixoto, coitado.
É como delirar com a puerilidade do Mia Couto, coitado.
É como fingir que o papão nosso de cada dia não há - e que se chama Imbecilidade, o papão.
Não, não tem importância.
Por mim, tenho muita pena de não ser o Prévert.
Eu gostaria muito de ser o Prévert: de já ter morrido, de ter escrito aqueles poemas que faz bem ler com um sorriso cúmplice nos beiços.
Cagar e andar, naturalmente, para o Torga, para o Eugénio, para o Ramos Rosa, para a seita toda que não seja Carlos de Oliveira, António Osório, Ruy Belo, Camões.
Aprender a mudar os fusíveis, ser útil aos vizinhos, amar nos animais a memória profunda do nascimento mais inocente.
Matar as moscas à palmada para poucar nos clorofluorcarbonetos que dão cabo do ozono.
Perdoar o catolicismo ao Graham Greene, ir a Peniche adorar a Nau dos Corvos, ler a senhora Rodoreda e recomendá-la às pessoas que desligam a televisão quando nos convidam para jantar.
O senhor Manuel Pinho já não faz mal nenhum.
Pensando bem, nunca fez, coitado.
Ele é só aquilo, coitado, ele se calhar gosta da mulher e da nossa Pátria.
Se calhar, ele não saberia escolher entre Paul Celan e a Júlia Pinheiro.
Ele, se calhar, gosta da Mariza e da Dulce Pontes e assim.
Ele, se calhar, preferiria - como todos nós, homens - ter nascido Richard Gere e não Manuel Pinho: ou até, por baixo, Joaquim de Almeida, Manuel Pinho é que nunca
mais.
O que me fascina nisto é ter em casa só para mim a edição da Ulisseia de "Bosque Proibido", sim, que o antropólogo Mircea Eliade também foi romancista.
Tendo a edição da Ulisseia de "Bosque Proibido", que é que me interessa que um ministro faça corninhos digitais na Assembleia da Abúlica?
O que me fascina nisto é fazer um quase poema quase pátrio sem falar no Chefe, no menino-de-ouro, no Filho que é Pai à direita do Espírito Santo e
dos outros bancos todos.
Nenhum de nós pode nem deve, assim de repente, chegar às aldeias e dizer às mães que telefonam para as rádios locais que na TSF se fala à americana com hãs no intervalo das sílabas para a informação ser mais, precisamente, americana.
Nenhum de nós pode nem deve, assim de repente, chegar às aldeias e dizer às mães que o ensino técnico-profissional pode produzir gouchas apresentadoras, por assim dizer, significando aqui "gouchas" como aportuguesamento de "esquerdas" a partir do francês "gauches".
Nós temos todos é de ser felizes sempre que possível.
Ele ainda há hipóteses.
Uma delas é aproveitar o sol e a chuva e ainda respirarmos e termos sido amados a ponto de amar sabermos.
De modo que Angola não tem importância, o avião presidencial, a filha presidencial, os diamantes, a conversão católica da senhora Maria Barroso, os saiotes melífluos do sacerdote Melícias, a coluna cor-de-rosa do Carlos Castro no "Correio da Manhã", o cinzentismo obrigatório do "Diário de Notícias", o esquerdismo reformado da "Visão-ex-O-Jornal", o mcdonaldismo alegadamente informativo do "Expresso" de trazer nas manhãs-de-saco dos sábados-de-plástico, a Santa TVI analfabetizando militantemente os cafés rurais da Nação - nem a alegada Educação Nacional.
A Educação Nacional, senhores e senhoras: isto dos exames de cacaracacá, isto tão aborrecido de ensinar & aprender a ler-escrever-contar-e-pensar, isto dos professores, coitados, isto das peregrinações-a-Lurdes, coitados.
A Saúde Nacional, senhoras e senhores: as prenhes a desprenhar-se à pressa nas ambulâncias, os centros de saúde infestados de médicos contrariados e de enfermeiras com a menopausa aos coices e de administrativas que jogam ao solitário e ao imeile dos sáites de encontros amorosos com gajos brasileiros e de administrativos que jogam ao solitário e ao imeile dos sáites de encontros amorosos com gajas brasileiras.
A Justiça Nacional, meninos e meninas, cheia de desprovedores por tudo quanto é canto, e de moitas-flores conselheiros por tudo quanto é praça-da-alegria e assim, e de desembargadores embargados de lágrimas de há-ali-gueitór, e de valentins- e-ou-dias-loureiros.
O Bairro Social Nacional, meninas e meninos, carregadinhos até aos dentes dos restos escoriais do colonialismo, atravancadinhos de rendimentós mínimos de rintintinserção-social e outras merdas às cores.
Se me dessem a escolher entre a Pátria e o Descalabro, eu não escolheria o que não pode ser separado.
Se me dessem a escolher entre dormir sexualmente com uma gaja das boas e ter o nº 117 da Colecção Vampiro, eu escolheria o nº 117 da Colecção Vampiro porque a Pátria já não tem gajas boas para dormir sexualmente, só tem descasadas da 24 de Julho e brasileiras dos restantes 364 dias.
Ao contrário, portanto, do que o senhor Manuel Pinho possa pensar, o senhor Manuel Pinho não tem importância, no que, aliás, a Pátria o imita tremendamente.
Quando posso, leio o suplemento "Babélia" do "El País", claro.
Quando posso, vou à Figueira da Foz comer sardinhas assadas e rever aquele amarelo das casas que é único no meu mundo.
Quando posso, vou a Coimbra entristecer deliciosamente entre o Botânico e a Casa do Sal, permeável à nostalgia dos comboios, à graça pobrezinha do Choupal, à humidade da Adelino Veiga, à pederastia gerontológica da Estação Nova, às porcarias de papelão que os ciganos deixam pela borda do rio, ao perfume a lixívia das divorciadas de Celas e dos Olivais, à devastação da ex-Zona ex-Industrial da minha Pedrulha.
Quando posso, sou português sem dizer nada a ninguém.
Só tenho pena é de já não beber.
Quando bebia, era mais fácil indignar-me depressa e sem consequências.
Quando bebia, também andava por aí a fazer corninhos com os dedos.
Quando bebia, também amava muito a Pátria, mesmo com o Scolari.
Agora, dou-me a Préverts e a Eliades.
Percebo a necessidade de Deus em Graham Greene.
E vou à minha vida em português, certo de ter filhas lindas e portuguesas,
mas lindas.
E um dia vamos todos ter duas datas a seguir ao nome
e nenhuns cornos,
finalmente.
3 comentários:
Grande leitura!
Eu cá também deixei de beber e também deixei de me indignar depressa, de fazer corninhos e de amar a Pátria.
Mas não tenho pena nenhuma.
Maravilhoso. bj
Parabéns Daniel. Tomei a liberdade de publicar no meu Jornal do Pau.
Abraço
Enviar um comentário