07/10/2006

Tango Belga - história 13 do Anoitecer ao Tom Dela

1
O amor de Adélia por Filipe acabou de morrer às onze e um quarto da manhã de uma terça-feira de outono. Ela estava a trabalhar no escritório. Havia uma telefonia a um canto. Do aparelho, saía um tango assassino. Foi o tango quem acabou de anavalhar o já moribundo amor de Adélia por Filipe.

2
Adélia olhou pela vidraça do escritório. Lá em baixo, o parque de estacionamento da fábrica consubstanciava, em marcas e modelos, as diferenças entre pobres, remediados e ricos. O carro de Filipe também lá estava. Era um dos remediados. Adélia tinha vindo nele, como sempre. Mas já nele não voltaria a casa. E em casa dela não voltaria a entrar Filipe.

3
Filipe era casado com uma professora baixinha e longínqua. Passava trimestres sem ela. Um dia, a professora telefonou e disse a Filipe que aquela vida deles não era vida. E que estava a pensar efectivar-se o mais longe possível do passado comum. Filipe disse “sim, senhora” e foi beber copos para o mesmo bar onde Adélia comia, todas as noites, uma tosta mista.

4
O engenheiro mecânico Filipe e a secretária Adélia começaram a sair juntos. Depois, começaram a entrar juntos. Cinema, bar, fábrica, casa – começaram a partilhar tudo. Ele era um amante caloroso. Ela aceitava tudo. Adélia não se importava com nada. Quando ele lhe perguntava se ela o amava mesmo, ela respondia:
– Sim, senhor.

5
Era, portanto, um amor. E o amor dela por ele começou a morrer logo da primeira vez que ele, mais por ternura que por inquérito, lhe perguntou se ela o amava de facto. Ela respondeu “sim, senhor” mas ficou a pensar para lá da resposta. E pensar é, para o amor, tão assassino como uma navalha de tango.

6
Uma noite, na cama, ele chorou depois do amor. Filipe tinha-se apercebido de que aquilo, tudo aquilo, se transformara numa ginástica convulsa, uma espécie de nada multiplicado por metade de dois. Ver um engenheiro mecânico chorando não é grande espectáculo. E Adélia disse:
– Deixa-te disso, vá.

7
No verão, foram à praia duas ou três vezes. Antes, iam à praça comprar fruta e frango assado. Nadavam na água fria. O corpo de Adélia resplandecia como uma boca vertical. Filipe fingia não ver, mas a verdade é que morria por ela. Não morreu.

8
O verão passou, veio o outono com suas terças-feiras. Adélia foi promovida a chefe de escritório. O patrão veio ter com ela e falou-lhe de uma viagem de uma semana a Bruxelas. Adélia nem quis ter tempo para pensar. Respondeu:
– Sim, senhor.

9
Filipe voltou a frequentar o bar dos solteiros anoitecidos. Viveu eternidades de uma noite. Passou-se um ano até que se fez hoje. Filipe ainda não sabe, mas esta noite a professora vai telefonar-lhe para que ele pense na hipótese da reconstrução do casamento. E Filipe há-de responder que vai pensar.

10
Filipe, que aprendeu alguma coisa com esta história, não vai pensar nada. Ele sabe que pensar nunca ressuscita aquilo que matou. É por isso que ele está para trocar de fábrica, de carro e de bar nocturno. Trocar de vida é que não – porque a vida não é coisa que tenha troco, embora não valha um tango.




Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006

2 comentários:

Anónimo disse...

É quase pecado podermos ler-te à borla. Se em Pombal um gajo (hélas, mas eu também preferia que fosses a tua sobrinha :) que só conheces de vista te der um abraço despropositado, sou eu

Maria Carvalho disse...

Adorei!!

Canzoada Assaltante