31.
Para que Saibas como Durmo a Vida, P.
Souto, Casa, madrugada e tarde de 12 de Agosto de 2009
I
Disse-te já que todas as noites é junto a um rio que adormeço lavado de lavanda?
Ter-te-o-ei dito decerto, que muito me repito já – ecóica é a idade que, avançando, a si mesma recua.
É uma ingenuidade feliz, imitar assim o meu futuro de terra e a minha terra futura.
Junto, um rio corre pratas.
Roçagam-se levianas as pedras, a areia do leito movediça-se prazenteira, uúlam as aves da noite – e eu tudo vejo de bem cerrados olhos.
Não tenho frio nem fome, gasalhei-me de roupas e vitualhas antes de me deitar a jazer, atento e feliz.
Também me não ocorrem já sexualidades nem porcarias, só bocaditos de redondilhas, rostos brandos brandamente afagados outrora – e saudades do meu Cão Amarelo e do meu Pai, mas com, digamos, saúde.
O ar tem lances frutados, é crepitante a vizinhança das tangerineiras, dá-lhes de flanco o favónio aromado.
O resto é páramo lunar: o gesso das coisas é uma olaria de crateras.
Aldeiazinhas de presépio lusc’ofuscam-se nos panos da treva, gosto sempre de imaginar as famílias tomando caldo e coçando gatos à lareira, o mais pequenito é muito engraçado, o mais velho está na tropa não tarda nada.
II
Olhos cerrados, abre-se-me a beleza maravilhosa das pequenas mentiras:
o riacho que é tântalo de si mesmo,
os dedos fluindo como enguias feitas de cordões de água,
o firmamento electrificado de migalhas diamantinas,
o jacto insonoro que as traceja,
a irrisória falácia de Deus,
o amor das pessoas aos filhos,
o mel dentro das pálpebras chamando as abelhas dos sonhos.
Assim quase durmo quase vivo, a cama povoada de instâncias da Natureza:
Lucrécio,
o meu Pai,
o meu Cão,
Catulo,
a Yourcenar,
a musicalidade dos nomes florais
(estrelícia-miosótis-jacintodágua-jasmim-begónia),
relampejos vítricos de louça azul,
certas ruas de Viseu enjauladas pela chuva,
o Caramulo onde passeei com os mortos,
o meu tio Alberto,
o Picoto,
as cheias do Bolão,
a ponte dos arcos de Maiorca,
a chegada a Carritos,
a exaltada exultação da Figueira da Foz,
beduínos e dromedários,
piratas e flibusteiros,
escudeiros e onzeneiros,
João Xavier de Matos lido no Chiado por Carlos Queiroz,
a Sãozinha de Alenquer e a Alexandrina de Balasar,
os homens da minha rua,
segmentos das histórias dos outros,
o pai da rapariga de Tavarede batendo-lhe com o cinto na barriga,
o pequeno Tiago de volta do pai no café de Albergaria dos Doze,
o senhor com nome de mês e olhos de papel-de-céu-num-dia-bom,
o homem das botas de lona cuja mercearia foi à falência a começar pelos olhos dele,
a ti’ Maria do Sol com o quartilho de mistura,
o meu cunhado criador de pardais,
a gaguez do meu tio António irmão de Alberto,
o Homem a chegar à Lua na nossa sala,
a mesma por onde passaram os tanques ingénuos do 25,
a Figueira da Carmo,
o Poço da Galinha Morta,
a família cabo-verdiana de dois adultos e dez crianças na casa em ruínas da encosta do cemitério,
o Zé Tarzan a olear betume,
o senhor Rendilho sentado às escuras,
as mortes infantis da minha infância tão acordada como nunca mais para sempre,
a passagem da Volta à Estação Velha com o Agostinho de camisola amarela à frente,
o Kalinkas-115 sem vergonha nenhuma a cagar de costas viradas para a multidão festiva no Parque da cidade em dia 1º de Maio ou 25 de Abril pouco depois dos cravos,
o senhor Velindro a dar champanhe na Queima das Fitas de 1986,
o mendigo de barbas de neve que trocava calendários de santos por um prato de sopa e quanto o meu Pai lhe pudesse dar,
isto ser tudo uma passagem,
o primeiro beijo foi com a Cristina do senhor Pinto e da senhora Hermínia na garagem onde depois foi viver uma família de retornados,
a senhora Teresa e as duas filhas solteiras e velhinhas vendiam ovos bons como condensações em casca do sol-poente,
o relâmpago primeiro da poesia na minha cabeça com aquele livro
O Poeta Faz-se aos Dez Anos
da Professora Maria Alberta Meneres
e também
Platero e Eu
de Juan Ramón Jiménez
com ilustrações maravilhosas de Bernardo Marques,
edição da Livros do Brasil,
a delicadeza tímida do senhor Sacramento casado segunda vez com a Amarala,
o danado que ficava o Zé Marques
(José Manuel Rebelo Marques, lembro-me bem do nome todo)
quando a gente lhe chamava
Ó Zé Macaco, ó Zé Macaco,
o Beto e o Mário e o Victor e o Lelo (RIP) e o Beto Amaral e o Pedro e o Jorge Sacramento e o Carlos Patatolas e o JêPê e o Quico e o Jorge do ti Alcides e o Tó Chicha e o Armando e o Rui Shartela e o Américo e os irmãos Toninho e Nelito Elói da senhora Celeste que dava injecções,
o senhor Carlos e a senhora Eduarda da loja pais da Màlita que deram em jeovás,
a Belinha Gorda que casou com o Benjamim Preto,
o senhor Amaro e a mulher para quem escrevi as lápides a pedido do filho mais novo o Pedro,
o homem que comia nozes no monte e vendia de porta em porta um livro de capas vermelhas e letras douradas chamado
A Saúde pelos Alimentos,
aquele ano em que me levantei muito cedo a 2 de Janeiro para conseguir ser o cartão nº 1 da Biblioteca Municipal de Coimbra e consegui e depois quando ia requisitar agathachristies e o Mundo em Guerra e steinbecks e hemingways e simenons dizia
Número Um!
em voz alta e os outros leitores olhavam-me com uma espécie de espanto e de consideração que ainda persigo na cabeça dos meus leitores com os versos e com tudo o que me anda na cabeça quando cerro os olhos para dormir outra vez para sempre como nunca mais a minha vida,
Pai.
4 comentários:
É por isto, pá!
"Também me não ocorrem já sexualidades nem porcarias, só bocaditos de redondilhas, rostos brandos brandamente afagados outrora – e saudades do meu Cão Amarelo e do meu Pai, mas com, digamos, saúde."
E também por isto, ó Abrunheiro!
"...as cheias do Bolão,
a ponte dos arcos de Maiorca,
a chegada a Carritos,
a exaltada exultação da Figueira da Foz..."
Eu já senti isto num dia qualquer.
Mas não é só por isto que a poesia do Abrunheiro está na preia-mar.
Saúde e longa vida a escrever, ó Abrunheiro!
Gracias, mi Amigo.
Que bonito e bom de ler. Theresa
Que gentil, T.
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