13/08/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (31)


31.

Para que Saibas como Durmo a Vida, P.

Souto, Casa, madrugada e tarde de 12 de Agosto de 2009

I

Disse-te já que todas as noites é junto a um rio que adormeço lavado de lavanda?

Ter-te-o-ei dito decerto, que muito me repito já – ecóica é a idade que, avançando, a si mesma recua.

É uma ingenuidade feliz, imitar assim o meu futuro de terra e a minha terra futura.

Junto, um rio corre pratas.

Roçagam-se levianas as pedras, a areia do leito movediça-se prazenteira, uúlam as aves da noite – e eu tudo vejo de bem cerrados olhos.

Não tenho frio nem fome, gasalhei-me de roupas e vitualhas antes de me deitar a jazer, atento e feliz.

Também me não ocorrem já sexualidades nem porcarias, só bocaditos de redondilhas, rostos brandos brandamente afagados outrora – e saudades do meu Cão Amarelo e do meu Pai, mas com, digamos, saúde.

O ar tem lances frutados, é crepitante a vizinhança das tangerineiras, dá-lhes de flanco o favónio aromado.

O resto é páramo lunar: o gesso das coisas é uma olaria de crateras.

Aldeiazinhas de presépio lusc’ofuscam-se nos panos da treva, gosto sempre de imaginar as famílias tomando caldo e coçando gatos à lareira, o mais pequenito é muito engraçado, o mais velho está na tropa não tarda nada.

II

Olhos cerrados, abre-se-me a beleza maravilhosa das pequenas mentiras:

o riacho que é tântalo de si mesmo,

os dedos fluindo como enguias feitas de cordões de água,

o firmamento electrificado de migalhas diamantinas,

o jacto insonoro que as traceja,

a irrisória falácia de Deus,

o amor das pessoas aos filhos,

o mel dentro das pálpebras chamando as abelhas dos sonhos.

Assim quase durmo quase vivo, a cama povoada de instâncias da Natureza:

Lucrécio,

o meu Pai,

o meu Cão,

Catulo,

a Yourcenar,

a musicalidade dos nomes florais

(estrelícia-miosótis-jacintodágua-jasmim-begónia),

relampejos vítricos de louça azul,

certas ruas de Viseu enjauladas pela chuva,

o Caramulo onde passeei com os mortos,

o meu tio Alberto,

o Picoto,

as cheias do Bolão,

a ponte dos arcos de Maiorca,

a chegada a Carritos,

a exaltada exultação da Figueira da Foz,

beduínos e dromedários,

piratas e flibusteiros,

escudeiros e onzeneiros,

João Xavier de Matos lido no Chiado por Carlos Queiroz,

a Sãozinha de Alenquer e a Alexandrina de Balasar,

os homens da minha rua,

segmentos das histórias dos outros,

o pai da rapariga de Tavarede batendo-lhe com o cinto na barriga,

o pequeno Tiago de volta do pai no café de Albergaria dos Doze,

o senhor com nome de mês e olhos de papel-de-céu-num-dia-bom,

o homem das botas de lona cuja mercearia foi à falência a começar pelos olhos dele,

a ti’ Maria do Sol com o quartilho de mistura,

o meu cunhado criador de pardais,

a gaguez do meu tio António irmão de Alberto,

o Homem a chegar à Lua na nossa sala,

a mesma por onde passaram os tanques ingénuos do 25,

a Figueira da Carmo,

o Poço da Galinha Morta,

a família cabo-verdiana de dois adultos e dez crianças na casa em ruínas da encosta do cemitério,

o Zé Tarzan a olear betume,

o senhor Rendilho sentado às escuras,

as mortes infantis da minha infância tão acordada como nunca mais para sempre,

a passagem da Volta à Estação Velha com o Agostinho de camisola amarela à frente,

o Kalinkas-115 sem vergonha nenhuma a cagar de costas viradas para a multidão festiva no Parque da cidade em dia 1º de Maio ou 25 de Abril pouco depois dos cravos,

o senhor Velindro a dar champanhe na Queima das Fitas de 1986,

o mendigo de barbas de neve que trocava calendários de santos por um prato de sopa e quanto o meu Pai lhe pudesse dar,

isto ser tudo uma passagem,

o primeiro beijo foi com a Cristina do senhor Pinto e da senhora Hermínia na garagem onde depois foi viver uma família de retornados,

a senhora Teresa e as duas filhas solteiras e velhinhas vendiam ovos bons como condensações em casca do sol-poente,

o relâmpago primeiro da poesia na minha cabeça com aquele livro

O Poeta Faz-se aos Dez Anos

da Professora Maria Alberta Meneres

e também

Platero e Eu

de Juan Ramón Jiménez

com ilustrações maravilhosas de Bernardo Marques,

edição da Livros do Brasil,

a delicadeza tímida do senhor Sacramento casado segunda vez com a Amarala,

o danado que ficava o Zé Marques

(José Manuel Rebelo Marques, lembro-me bem do nome todo)

quando a gente lhe chamava

Ó Zé Macaco, ó Zé Macaco,

o Beto e o Mário e o Victor e o Lelo (RIP) e o Beto Amaral e o Pedro e o Jorge Sacramento e o Carlos Patatolas e o JêPê e o Quico e o Jorge do ti Alcides e o Tó Chicha e o Armando e o Rui Shartela e o Américo e os irmãos Toninho e Nelito Elói da senhora Celeste que dava injecções,

o senhor Carlos e a senhora Eduarda da loja pais da Màlita que deram em jeovás,

a Belinha Gorda que casou com o Benjamim Preto,

o senhor Amaro e a mulher para quem escrevi as lápides a pedido do filho mais novo o Pedro,

o homem que comia nozes no monte e vendia de porta em porta um livro de capas vermelhas e letras douradas chamado

A Saúde pelos Alimentos,

aquele ano em que me levantei muito cedo a 2 de Janeiro para conseguir ser o cartão nº 1 da Biblioteca Municipal de Coimbra e consegui e depois quando ia requisitar agathachristies e o Mundo em Guerra e steinbecks e hemingways e simenons dizia

Número Um!

em voz alta e os outros leitores olhavam-me com uma espécie de espanto e de consideração que ainda persigo na cabeça dos meus leitores com os versos e com tudo o que me anda na cabeça quando cerro os olhos para dormir outra vez para sempre como nunca mais a minha vida,

Pai.

4 comentários:

Anónimo disse...

É por isto, pá!

"Também me não ocorrem já sexualidades nem porcarias, só bocaditos de redondilhas, rostos brandos brandamente afagados outrora – e saudades do meu Cão Amarelo e do meu Pai, mas com, digamos, saúde."

E também por isto, ó Abrunheiro!

"...as cheias do Bolão,

a ponte dos arcos de Maiorca,

a chegada a Carritos,

a exaltada exultação da Figueira da Foz..."

Eu já senti isto num dia qualquer.
Mas não é só por isto que a poesia do Abrunheiro está na preia-mar.

Saúde e longa vida a escrever, ó Abrunheiro!

Daniel Abrunheiro disse...

Gracias, mi Amigo.

Theresa Castello Branco disse...

Que bonito e bom de ler. Theresa

Daniel Abrunheiro disse...

Que gentil, T.

Canzoada Assaltante