Mundo-cão
É-me inevitável: de cada vez que se aproximam eleições, solto-me aos cães.
Faço assim: pela calada da noite, vou à varanda e sobressalto com perguntas retóricas a canzoada que dormia em pura inocência. Tipo isto: “Vocês voltam a votar no mesmo?”. E os cães: “Não, Não, Ão, Ão!”.
E eu: “Que é que vos falta?”. E eles: “Pão, Pão, Ão, Ão!”.
E eu assim: “Mas então os políticos são ladrões?”. E eles: “São, São, Ão, Ão!”.
Acendo um cigarro e rio-me baixinho, escarninho, contentinho da minha triste vida. Depressa volto à carga, claro: “Mas ó sacos-de-pulgas, almas dum raio, vocês acham que eles se dão bem uns com os outros?” E eles: “Dão, Dão, Ão, Ão!”.
E eu, felicíssimo e melancólico: “Será possível que eles vão continuar a gozar c’a gente?” E eles: “Vão, Vão, Ão, Ão!”.
Aproveito-lhes o ditongo nasal ao máximo, naturalmente: “Hão-de eles continuar a ser mais do mesmo p’ra pior?”. E eles: “Hão-de, Hão-de, Ão-de, Ão-de!”.
Isto com gatos não (ão, ão) resulta, já aviso, não vá o meu leitor, não tendo cão, querer caçar com tareco. Nem com canários, cágados, sogras, baratas e/ou outros bichos de estimação. A verdade é que só lá iremos soltando-lhes, a eles, os cães. Fume-se ou não, tenha-se ou não varanda.
O que é preciso é que tal caravana deixe de passar, ao menos impune. Mesmo que a nossa, aliás legítima, indignação perca a cedilha. Nem resignação nem persignação, ó mundo-cão!
(Eu sei, eu sei: isto depois passa-me, passa-nos a todos. Depois de lá repostos “eles” como mandadores deste vira-que-tira-e-torna-a-tirar, voltaremos todos a coleccionar cêntimos para demandar nos tristes hipermercados da modernidade as marcas-brancas dos pobres-de-espírito.)
Mas, enquanto não, “Não, Não, Ão, Ão!”.
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