Souto, Casa, 16 de Julho de 2009
Devo, como as árvores, ter crescido alguma coisa, posto que vos falo de pé, agora. Não tem sido sempre assim, eu sei, vós sabei-lo também. Além é inda o campo, sítio de largas e longas águas, por invernos nossos. A Quinta do Notel é que já não tem cavalos, que pena, nenhum de nós quer jamais que o Tempo leve os cavalos para nunca mais. Isto não tem mal, todos somos pessoas mais tarde ou mais cedo, e mais tarde ou mais cedo sem cavalos. Não nos larga o Tempo, é o que nos inda vai valendo.
Vezes há que se me apapoila o coração só de pensar. É outra vez enfiar os pés nas pequenas botas, ter tudo pela frente outra vez. Tenho voltado aqui pelas palavras, naves todas do meu tempo convosco e sem vós. Sem voz é que não. Conheço os céus agora porque, como vós, cresci para ser um alto bicho da terra. Conheço a terra, como ela se estende de erva, sombra, antigos cavalos, apreensivas ovelhas.
Conheço os invernos na Lousã, a extrema desolação de Peniche, aos dezassete anos vou comprar um livro do Balzac em Lagos, de Saint-Orens de Gameville praticamente não sei nada. Não se pode saber tudo, como vós sabeis.
Às tantas, em nosso torno as casas são cinzentas e cinzentos os bairros, outras infâncias iguais se des(p)enham nelas-casas e neles-bairros, assim é, sempre foi, tal vai sendo.
O nosso Tio António, o nosso amigo Zé Tarzan Agostinho, além a Quinta do Notel, além mais o Bolão, a Geria, S. Facundo (último reduto de António Abrunheiro e sua Laurinda de invencíveis olhos azuis): todo o Tempo do nosso mundo de que somos, temos sido, tal seremos.
Ou uma visão (verbal) de veados na neve, nas nossas velhices rumorosas. O inverno lousanense, o sortilégio de Coimbra, os primeiros 1º-de-maio pós-25, já longe tudo de todos.
Deixei entretanto entrar a sobriedade na minha vida. Um profissional da atenção (verbal) era o que tinha de ser, acabar sendo, para recomeçar sempre, nem sempre embora de novo.
Uma tarde, deitei-me mansamente no sofá da sala. Não demorou muito entrar num torpor acordado por dentro, sentindo os membros medusando-se no éter aquoso do quase-sono. Senti o meu irmão Fernando (um de vós) perto do Café Abadia, tínhamos vindo da piscina municipal, ele tomava conta de mim, ofereceu-me um sumo de frutas, o Zé Amaro bebeu um copo de leite e comeu uma bola-de-berlim, a tarde na piscina tinha sido uma espécie de visitação do paraíso.
E o milagre está em tudo isto, sendo imagem e imagem e imagem, não ser imaginário – mas verbal.
Lembro-me do Avô Carlos vivo, mas a morte dele foi um dos primeiros acontecimentos graves e importantes na minha vida. As mulheres cozinharam e tomaram canja de galinha na Casa dos Senhores. Lembro-me perfeitamente dessa morte grande, separadora de mundos, da tristeza forte da nossa Mãe, filha dele. O Campo do Bolão era ali mesmo à mão. Havia enguias na Vala do Norte, cujas águas não tinham inda apodrecido de lixo. Andei pela ínsua, colhi e comi tangerinas, lembro-me perfeitamente, nunca mais fiz isso.
Agora estamos todos no futuro, o Avô aparece à nossa Mãe na sala onde ela cumpre a etapa final da eternidade que pode. A vizinhança também rareou, as crianças casaram-se e divorciaram-se e voltaram a casar-se contra não sei quem e têm filhos aos fins-de-semana à hora a que sai o Expresso e vão levando a vida como nós, árvores.
(Como vós, também eu tive de nascer outras vezes outra vez. Viver é uma coisa que dá sobretudo trabalho – e trazer por coração uma papoila não ajuda muito, sempre vo-lo digo. Toda a gente, afinal, suponho, nasce numa ilha – de modo que se passa o resto da vida a tentar chegar a um continente qualquer. E quando se pensa ter chegado, foi a outra ilha mais que se chegou. E há, claro, na ilha, árvores que é preciso imitar.)
2 comentários:
Caminhei contigo; bebi um fino no Abadia e comi uma sandes mista, não sou de doces; senti o ácido adocicado das tangerinas; vesti de luto pelo teu avô; senti até o cheiro putrefacto onde já não há enguias... Não sei se te entendi, nunca o sabemos, apenas o cremos, mas estou seguro que cada passo que destes, dei eu a teu lado.
E ao fim, nem sei como te chamas... és apenas a diáfana memória dos amigos que já lá vão... se me permites, chamo-te amigo!
Obrigado, amigo.
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