31/10/2006

Foi o Calor - história 30 do Anoitecer ao Tom Dela

Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras - 91.2 FM -
1
No dia 11 de Abril de um ano que já lá vai e não há-de voltar, a mulher da limpeza do 5º piso da Faculdade de Letras apanhou um rapaz e uma rapariga aos beijos-de-língua num dos bancos do corredor do Instituto de Estudos Franceses. A mulher fez queixa ao bibliotecário, que fez queixa ao bedel, que escreveu participação da ocorrência linguística ao Conselho Directivo.

2
A rapariga foi apedrejada com bolachas de baunilha. O rapaz foi degredado para África. Ambas as famílias concordaram com as sentenças. A rapariga, que estava para apresentar tese em Literatura Inglesa Quinhentista, mudou para enfermagem, depois casou-se e obteve um casalinho de filhos – o Miguel e a Inês. O rapaz alcoolizou-se em Lourenço Marques e fez filhos sem apelido.

3
Antes daquela hora má, a vida era boa. O rapaz e a rapariga tinham-se conhecido numa república estudantil submissa apenas à monarquia da irreverência. Engraçaram uma com o outro e acharam por bem engraçar mais. Assim foi sendo até o dia 11 de Abril.

4
Uma noite lunar, a rapariga sentiu que o ar se lhe tornara curto de mais. Abriu a janela e respirou fundo: era ele, lá em baixo. Tinha uma viola e cantava

Ó minha amora madura
ai diz-me quem te abandonou


5
A rapariga despediu um beijo digital e fechou a janela. O rapaz meteu a viola no saco e foi caminhando pelas vielas íngremes de uma cidade que parecia última e não era. A cena passou. A Lua ficou um pouco mais, depois já não.

6
No dia 25 de Abril de um ano que já lá vai e não há-de voltar, foram reunidas as condições preparatórias para uma revisão legislativa dos beijos-de-língua. A saliva bombeada pelo coração deixou a clandestinidade e passou a ser um direito constitucional. Isto aconteceu mesmo assim.

7
Isto aconteceu mesmo assim – só que a rapariga já tinha tido os filhos e já nem se lembrava dele. Divorciou-se do pai do Miguel e da Inês e depois casou-se com um senhor que era pai duma Joana e dum Rafael.

8
No ano em que os colonos voltaram à pressa para a metrópole, o rapaz da viola não fez isso. Deixou-se ficar sem sentir que ficava. Também já não faltava muito – porque nada lhe fazia falta.

9
Uma noite, a mãe do Miguel e da Inês e madrasta da Joana e do Rafael, estando sozinha no quarto, sentiu que lhe era escasso o ar da respiração. Abriu a janela e desconfiou de imediato da Lua, que no céu ardia como uma fotografia do Sol.

10
A rapariga olhou para baixo e sussurrou para o rapaz que metia a viola no saco:
– Então e o resto da quadra?
O rapaz cantou:

Foi o sol foi a geada
Ai foi o calor que ela apanhou




Caramulo, tarde de 30 de Outubro de 2006

30/10/2006

Quartetos e Tercetos para Mudar(mos) de Futuro

LÁ MAIS PARA A FRENTE

Os que de nós puderem lá chegar,
voltar hão-de à infância do futuro:
de novo a baba, de novo
a ideia fixa e sem palavra.



DA NOVA LITERATURA PORTUGUESA

Nem nova,
nem literatura,
nem portuguesa.



QUARTETO TODO MASCULINO

O homem que não embarca, vai ao cais ver barcos.
O homem que não trepa, vai ao parque ver árvores.
O homem que não ama, vai à discoteca ver mulheres.
O homem que não vai, não é homem.



O OSS’OU A VIDA

Pulsa no pulso
o quartzo cardíaco.
A vid’a pulso.
Mailo oss’ilíaco.



PÁG. 1492 (d.C.) e ss.

Da América, o tabaco para cá.
Vingámo-nos:
americanos para lá.



Caramulo,
na pastelaria-padaria Giesta Dourada,
noite de 27 de Outubro de 2006

Este Outro Mundo - histª 28 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Se uma pessoa é tão mais pequena do que o mundo, por que motivo são os problemas do mundo tão mais pequenos do que os de uma só pessoa? Maiores do que os problemas de uma só pessoa são os problemas de uma pessoa só. O mundo não passa de palco, cenário e plateia. O drama é singular. É pessoal.

2
Esta treta toda dos problemas do mundo vs o mundo de problemas de cada um é da autoria de Celso Várzea Rodrigues, o meu amigo Celso, reformado dos caminhos-de-ferro e filósofo pessimista (ou péssimo filósofo) a partir do terceiro cálice de anis, no Aníbal.

3
O Celso não é viúvo, tem mulher. A mulher recebe a reforma dele e transforma-a em comida, aquecimento, limpeza e quotidiano. O Celso pede-lhe todas as manhãs umas moedas para o anis a cavalo do qual combate contra o resto do mundo. Sozinho, claro.

4
O meu amigo Celso não é mau. Nem mau amigo, nem mau Celso. O mundo não é grande coisa, concedo. Mas é o único mundo que há. Não há outro. “Precisamente!”, rebenta ele quando eu digo isto.
– Precisamente! Devíamos fazer outro deste que temos!
Entretanto, a tarde cai como um pano de cena. Cada um volta então para casa. Cada um para sua casa, cada um para seu mundo.

5
Até ontem. Isto foi sempre assim até ontem. O meu amigo Celso Várzea Rodrigues apareceu ao balcão do Aníbal à hora do costume. O Aníbal já levantava o braço para a estante de vidro onde a garrafa de anis exibe a cegueira do seu açúcar glauco quando o meu amigo Celso disse:
– Antes quero absinto.
Exclamou o Aníbal:
– Ena pá, absinto?!
E o Celso:
– Um gajo é que sabe o que quer. Só um gajo é que sabe. O mundo que se lixe!

6
E portantos, o mundo lixou-se e o Celso bebeu uma data de cálices de absinto. Isto foi ontem. Era dia da sociedade do totoloto. O Celso não quis entrar. Eu e o Aníbal pensámos que ele estava no gozo. Não estava. Não quis entrar no totoloto e não entrou. Pagou a despesa dele e saiu.

7
Vieram dizer ao Aníbal e o Aníbal disse-mo a mim: o Celso está condenado da próstata. Tem o caranguejo. Ontem, veio desenganado do Centro de Saúde. Hoje, ainda não veio.

8
Estou sentado ao balcão do Aníbal. Está a chover um cântaro de água fria por metro quadrado. A latada, a figueira e o pessegueiro parecem pessoas vegetais. Pode ser que o Celso ainda venha, que tenha ido a Viseu em busca de uma segunda opinião – e que este segundo médico o tenha devolvido ao mundo.

9
O telejornal abre com as inundações por todo o País. Uma senhora morreu em Pombal. Barcos de borracha navegam entre reclamos de farmácias e placas de advogados. Uma desgraça colectiva – o mundo não presta, mas a Natureza é doida.

10
E se amanhã o Celso não vier? O Aníbal diz que manda para o lixo a garrafa de anis. E eu pergunto:
– Então e a de absinto, também mandas?
E ele diz que não, que não manda. Diz:
– Mando fora só a de anis porque tenho a impressão que já é de outro mundo.



Caramulo, tarde de 26 de Outubro de 2006

À Esquina - histª 27 do Anoitecer ao Tom Dela

1
À esquina da avenida Fernão de Magalhães com a rua Carlos Leite, na cidade que foi de árabes e depois do bispo Fernando, tinha banca montada ao ar livre uma mulher caolha chamada Hermínia Leite Magalhães. “Hermínia” como só ela, “Leite” e “Magalhães” como os nomes das artérias. Hermínia não tinha o olho esquerdo, mas tinha banca montada ao ar livre. Vendia flores, caixas de fósforos, velas, pagelas, pensos-rápidos e cigarros de contrabando.

2
Hermínia tinha vendido, em anos não bons mas – como sempre e com toda a gente – melhores do que os posteriores, sardinhas vivas na praça. Então, ela era uma das mulheres frescas e cantantes que cheiravam mais a peixe e a tostões do que a própria sardinha e o dinheiro mesmo. Deixou de poder arrendar a banca da praça quando o homem dela adoeceu do riso.

3
O homem de Hermínia cumprira o que era de homem. Trabalhara numa olaria de santos e jogadores de futebol em bonecos que ora rezavam ora rematavam. Uma tarde de trovoada, o homem de Hermínia deu de começar a rir baixinho e nunca mais parava, nem parou. Parou Hermínia. Cedeu a banca de sardinhas e deu-se a tratar do homem dela.

4
A história do homem de Hermínia é curta. Por ter enlouquecido, levaram-no. Ela ficou no casebre, atenta ao silêncio molhado que sempre impera depois de alguém se rir. Foi falar com um homem que contrabandeava cigarros, levou dois volumes a crédito, arranjou uma caixa vazia de ananás dos Açores e dobrou a esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Escolheu aquela esquina por causa dos nomes. Era como se fosse uma sociedade.

5
Os tostões tornaram-se suficientes. Não tanto pelo volume de vendas como pela vocação de conselheira que começou a exercer, sem saber quando nem porquê. Pessoas com problemas de azia, ou Zodíaco, ou mal de barriga, ou ciumentas – foi essa gente que pediu e pagou para ouvir Hermínia, cuja palavra acertava sempre no óbvio. E o óbvio era que a vida não podia ser pior do que a morte.

6
A vida não podia ser pior do que a morte – ou do que o riso sem razão. Nem do que a razão sem riso. A vida não podia ser pior do que a vida. As pessoas ouviam-na, compravam-lhe fósforos, cigarros americanos, padres-américos e flores vivas como sardinhas. E deixavam mais qualquer coisinha.

7
Hermínia mantém firme na esquina da Magalhães com a Leite. Já não tem muito tempo. Talvez mais três parágrafos, mas sem contar com este.

8
A vida é uma repetição de crianças. A cidade renova a frota de transportes públicos. Muda de prata para laranja a cor da iluminação ribeirinha. Quando Hermínia levanta a banca, começam fantasmando pela esquina outras mulheres para a repetição do óbvio.

9
Lá longe, o mar tem asma. Com dentes de espuma, o mar rói as falésias negras. Troca peixes por pescadores. Tabaco por marinheiros. Onda por onda. De onde está, Hermínia ouve o mar que nunca viu. É o vento nos cedros – é a mesma coisa.

10
Exactamente amanhã, Hermínia não vai montar banca na esquina da Fernão de Magalhães com a Carlos Leite. Amanhã há-de ser um dia histórico. Fora de todo o comércio, toda a esquina, todo o homem – Hermínia vai acordar perante o oceano verdadeiro. E perante tão descomunal alegria, o mais natural é que comece a rir-se e nunca mais pare.


Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006

Uma História para os mais Pequeninos - histª 25 do Anoitecer ao Tom Dela

1
O motorista perdeu o controle do autocarro por causa da chuva ou do destino ou de ambas essas coisas imponderáveis. A viatura galgou a protecção de metal, embateu de lado na ravina e imobilizou-se de rodas para o ar como um insecto descomunal. Morreram quatro pessoas.

2
Uma das quatro vítimas mortais era um homem de 48 anos para quem a vida, aliás, já não contava muito. Naquela noite em que o destino chovia, tinha apanhado o expresso da noite como sempre costumava fazer. Mas já não era uma viagem de regresso. Era uma viagem de partida.

3
O homem vivia numa casa baixinha com uma mulher pequena. Os móveis eram de miniatura, assim como as colheres, as facas, os pratos, as pratas e os garfos. A banheira era pouco maior do que uma terrina. Só a esperança do homem era grande. A esperança da mulher também era grande, mas diferente da esperança do homem.

4
A mulher tinha esperança noutro homem. Esse outro homem quase não entra nesta história. Basta dizer que era um homem grande e que vivia numa casa enorme. A mulher deitava-se ao lado do marido, mas era com a ideia do outro homem que dormia.

5
Todas as manhãs, muito cedo, o homem pequeno partia no expresso. Cumpria o trabalho dele na cidade grande e voltava para casa para anunciar involuntariamente a enormidade da noite. A mulher já se tinha deitado com a ideia dela. Ele comia na solidão miniatural da cozinha. Lavava a louça e deitava-se na cama grande de mais para a esperança dele.

6
A esperança dele era ter o que já tinha: aquela casa, aquela mulher, aquele trabalho e aquela vida. Ter o que se tem chama-se manter. No caso dele, começou a chamar-se reter. Passou a dormir no quarto do filho que nunca tiveram nem mantiveram.

7
Era uma casa baixinha apenas aumentada pela lupa do desespero. Não havia nada a fazer senão esperar. Nunca lhes passou pela cabeça, nem a ele nem a ela, dar o passo-de-gigante da separação. Acreditavam ambos num Deus que havia escrito num livro a equivalência do casamento ao tamanho da vida.

8
A solução era contrária à vida. Mas o mesmo Deus escritor tinha tudo previsto, havendo determinado que a vida, ao contrário de um autocarro, não pode ser acelerada em plena noite, em plena chuva, em pleno destino.

9
É possível que Deus, Que, por tudo conter, não tem tamanho, sinta por vezes pena das coisas pequenas que criou ao escrever um tão grande livro. É possível que a tempestade, o asfalto e as protecções metálicas das auto-estradas se conjuguem como verbos para benefício de princípio e de fim de histórias.

10
O homem pequeno foi, aos 48 anos de idade, uma das quatro vítimas mortais do acidente que nessa noite abriu os telejornais. Não viveu uma vida grande. Aos 48 anos, ainda só se começa a saber um pouco muito pouquinho da vida mínima. O motorista do autocarro sobreviveu. É um homem grande e vive numa casa enorme.


Caramulo, tarde de 23 de Outubro de 2006

A Casa do Trinta-Diabos - histª 24 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Há muitos, muitos anos, havia um homem que chefiava uma quadrilha de ladrões de estrada. Ninguém conhecia o nome verdadeiro dele. Mas a fama do chefe dos ladrões acendia tanto o terror na noite e nos corações, que se tornou conhecido pela alcunha do Trinta-Diabos.

2
Não havia automóveis, nem aviões, nem rádio, nem televisão. Havia o Sol e havia a Lua. E havia a casa do Trinta-Diabos, que só um dos ladrões do bando sabia onde ficava. Era para essa casa que o ajudante do Trinta-Diabos levava as malas e os alforges com o produto dos roubos.

3
Os salteadores operavam de noite. Preferiam as carruagens que se arriscavam pelas amortecidas estradas dos bosques a horas mortas. Depois do assalto, os ladrões desatrelavam os cavalos das carruagens e fugiam com eles. As vítimas ficavam ali até que Deus voltasse a lembrar-se delas.

4
O povo dizia que os ladrões comiam os cavalos roubados depois de lhes terem bebido o sangue misturado com cinzas de oliveira. Mas isso não era a verdade. A verdade é que os ladrões vendiam os animais em feiras de gado, que naquele tempo eram legais porque ainda não havia nem União Europeia.

5
Foi por causa das feiras de gado que o bando foi detectado, preso e desmantelado. Todos foram metidos a ferros no cárcere – todos menos o Trinta-Diabos, que nunca ia às feiras, preferindo ficar em casa a contar e a recontar as moedas de oiro à luz do azeite.

6
O ajudante do Trinta-Diabos, para aligeirar a pena de degredo para África com que o ameaçaram, confessou a localização da casa do Trinta-Diabos. Os polícias pegaram nele e partiram, numa noite de carvão apagado, em busca do sítio e do terrível chefe da quadrilha.

7
Quando, cheios de cautelas e suores-frios, chegaram ao local indicado pelo delator arrependido, a casa não estava lá. Foi em vão que o atónito criminoso jurou e voltou a jurar que era ali e em nenhures senão ali. Chorando baba, sangue e ranho, gemeu que só podia tratar-se de algum milagre infernal. Que só trinta diabos no corpo de um poderiam mudar de sítio uma casa tão grande como a do seu antigo chefe.

8
Os agentes da lei não acreditaram nele e mataram-no ali mesmo por fúria e vingança. Enforcaram-no num castanheiro e abandonaram-no ali à podridão em sinal de aviso ao Trinta-Diabos.

9
A casa nunca foi descoberta. Mas o povo sabe que ela só pode continuar a existir – e algures na mesma serra. Em noites invernosas, quando o frio torna a solidão tão material como uma pedra, há quem veja, lá longe no manto negro da serra, uma luz de azeite tremendo como uma estrela maligna. Mas quando a manhã volta, os cães e os homens nunca encontram a casa no sítio da luz.

10
Se esta história é verdadeira? Claro que sim. Todas as histórias são verdadeiras depois de escritas e contadas. Sou o bisneto do Trinta-Diabos. Minha Mãe foi a única filha da única filha dele. Ao lado do papel onde escrevo estas palavras para Vossa ilustração e Vosso entretenimento, brilham ainda, à luz agora eléctrica, as moedas de oiro que o Trinta-Diabos nunca pôde gastar por não ser capaz de sair de uma casa que não existia.


Caramulo, tarde de 18 de Outubro de 2006

O Resto - histª 4 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Ele foi casado 19 anos. Ficou viúvo aos 41. Agora tem 65. Tantos números tem a vida. Mas só 1 de cada vez. Ele já não é daqui. Ele pertence a outras contas.

2
Pronto, os filhos deram flor e fruto. Envelheceram, os filhos. Foram-se embora. Às vezes, nas datas cardiais, telefonam. Ele só se lembra do Natal, por exemplo, por causa disso.

3
Tanta coisa e tanta coisa – e tão pouca coisa, afinal. A casa bem paga – e boa. 3 quartos. 2 sanitas. 1 sala de espera. À espera de quê?

4
Ele tem o mesmo carro há 14 anos. Ou 15? Mais uma data – não, isso não – isso não, por favor. É só 1 carro. É só o tempo que ele comprou.

5
No princípio, o Verbo era bom. Tu tens 20 anos, eu tenho 22. Vamos para França. Vamos ver como é. Vamos ver se isto dá.

6
Casas baixas chamadas mêzons, mesmo assim. Limpezas domésticas. Servente de pedreiro. 800 francos. 1000 francos. Ora – francamente.

7
A rapariga-esposa morreu do coração. O médico disse ao homem:
– Era de nascença.
O homem não disse nada. Mas, pelas ruas, foi dizendo a si mesmo:
– De nascença não se devia morrer.

8
Agora, já não há problema. Os filhos emigraram para as vidas deles. Ele ficou. Tem rotinas pequeninas. Colecciona selos, recortes de jornais, tampas azuis de bebidas gasosas. Ele não faz mal a ninguém.

9
Amanhã, ouvindo a rádio, ele não há-de dar atenção à guerra da moda. Está cansado. Já não quer saber. Mas, no país estrangeiro, ele continua estrangeiro. Há 1 solução. Contratou uma companhia de seguros. Quase todo o dinheiro para os filhos. Menos 24. Menos 41. Resto 0.


Caramulo, tarde de 12 de Setembro de 2006

Quem não Fala, Come - histª 3 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Depois de muitos anos, a mulher voltou a ter um filho. Homem e mulher julgavam-se já a salvo do comando bíblico, depois de o mais velho ter sido sepultado em Angola e de todos os outros terem encontrado na França o que esta serra lhes não podia dar.

2
Era mais um neto do que um filho, posto que a mulher tinha já idade para ser filha de si mesma. Resignaram-se. Moravam numa casa de pedra e pau no lado mais só da serra. A aldeia mais próxima conseguia fazer-lhes chegar o som do sino, mas não mais do que isso.

3
A mulher fez como das outras vezes. Soltou-se da criança entre sangues e transparências – e sem um grito. Lavou o rapaz, agasalhou-o e deu-lhe leite do próprio peito: o corpo dela não tinha esquecido nada.

4
O cão, os patos, o porco e as galinhas eram o resto humano da creche do menino. Entendeu-se com eles mercê da velha linguagem que desde sempre e para sempre traça a união e a concórdia entre crianças e bichos.

5
Um dia, a mulher morreu. Na morte, duplicou-se: faltava a mulher a um e a mãe a outro. Enterraram-na debaixo do castanheiro, entre sangues e transparências – e sem um grito.

6
Nessa noite, o rapaz disse:
– Meu pai, e agora?
O pai disse:
– Agora, é o resto.
Para o rapaz, o resto parecia maior do que era possível viver. Saiu ao quintal, enxotou o cão e não respondeu ao porco – nem aos patos – nem às galinhas.

7
À primeira hora do dia, quando a luz não é ainda luz mas tão-só uma dedada da tinta do desmaio, o pai acordou sozinho pela primeira vez na vida. Sentiu de imediato o decreto da solidão. Resignou-se.

8
O rapaz ainda anda pela serra. Não tem irmãos que conheça. Nos primeiros tempos, como sabia a língua dos animais da terra, alimentava-se de peixes – os peixes são da água e não falam.
9
A trovoada acorda pai e filho em sítios diferentes. O pai acorda e espera. O rapaz acorda e põe-se a andar. Vai habitando casinhotos de pedra e pau abandonados por pastores que já não há.

10
A roupa do rapaz gastou-se. A magia da linguagem também. Deixando a fala, curvou-se. Ajoelha-se perante o diabo da fome e o deus da saciedade. Como já não tem de falar com os animais da terra, alimenta-se deles sem remorso. Só lhe falta uma mulher.


Seia, 7 de Setembro de 2006

A Televisão Faz mais Mal do que a Rádio - histª 2 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Há muitos anos que o senhor Alberto Germano tinha e mantinha aberto um estabelecimento de duas portas de taberna e mercearia. O senhor Alberto Germano e a família moravam por cima do negócio, na sobreloja. A mulher era entrevada. A filha era morena.

2
A mulher do senhor Alberto Germano da Venda já nem tinha nome de baptismo. Tinha entrevado há tantos anos, que só era A Entrevadinha do senhor Alberto. Adoeceu e ficou acamada para quase sempre depois do nascimento da única filha, que nasceu morena e assim se manteve.

3
O senhor Alberto Germano pontificava ao balcão de Vinhos e Tabacos. Ao lado, com passagem interior, era a mercearia, um cubículo negro de humidade que cheirava a ranço de bacalhau, a queijos mortos, a áfrica de café e à cor morena da filha do senhor Alberto e d’A Entrevadinha do senhor Alberto.

4
Na taberna do senhor Alberto Germano, os homens enrolavam onças e conversas. Ensebavam cartas dois a dois. Bocejavam em voz alta e pensavam para dentro o que de outras bocas para fora saía. E a vida corria.

5
Na mercearia da filha do senhor Alberto e d’A Entrevadinha do senhor Alberto, havia um livro escrito a lápis com a poesia da miséria. Tanto de massa, toucinho, bacalhau, feijão a litro, sal e açúcar. Açúcar, pouco.

6
Na última década a preto-e-branco da História Nacional, o senhor Alberto Germano da Venda comprou um aparelho de televisão. A emissão tinha ópera e teatro. Os apresentadores e as apresentadoras eram senhores e senhores com vozes da rádio e sabiam falar português.

7
O senhor Alberto Germano da Venda juntava os bancos em plateia. A filha morena, mais solícita do que nunca (e mais do que nunca morena), ajudava o pai. E ficava para ver e para sonhar.

8
A Entrevadinha do senhor Alberto ouvia em cima o rumor dos bancos, do teatro e da família em baixo. Punha mais alto o som da rádio. E rezava a um Deus velho que não parecia ser capaz de milagres novos.

9
No último Verão da última década a preto-e-branco da História Nacional, a filha do senhor Alberto e d’A Entrevadinha do senhor Alberto fugiu com um cantor de baile que lhe jurara a botões juntos ter aparecido num programa depois, ou antes, de António Calvário.

10
Na noite em que se tornou impossível desmentir o escândalo da fuga da morena, a mulher do senhor Alberto Germano da Venda levantou-se de mansinho. Desceu da sobreloja e, sem ser de mansinho, foi-se ao televisor e escaqueirou para sempre aquela coisa do Diabo.


Caramulo, tarde de 2 de Setembro de 2006

28/10/2006

Casa do Alívio – história 29 do Anoitecer ao Tom Dela



A transmitir entre as 22 e as 23h00

Rádio: Emissora das Beiras – 91.2 FM
Net:
www.emissoradasbeiras.com


1
Quem quiser levar para casa menos do que aquilo que trouxe, pode e deve vir à minha loja. Foi uma ideia boa que tive. Talvez tenha sido mesmo a única ideia boa que tive na vida. A loja chama-se Casa do Alívio. Fica aqui mesmo, onde e de onde vos falo – numa viela perfumada por mijo de gato e sangue cigano; num beco adormentado por garganta de fadistagem e ausência de sol. Casa do Alívio – ao Vosso dispor.

2
O cliente entra, examina à vontade a mercadoria exposta e faz ou não faz negócio. Eu é que sei, mas o truque é o cliente pensar que ele é que sim. Não é verdade, mas a Casa do Alívio também negoceia mentiras e derivados.

3
Uma ocasião, entrou-me pela loja uma senhora com uma proposta de considerável importância. Propunha ela que, em troca de todo o seu passado, eu a brindasse com algo de perfeita inutilidade mas que não pudesse ser dispensado. O passado dela cabia todo em duas caixas de sapatos vazias. Fiz-lhe então uma contraproposta irrecusável.

4
A senhora oferecia-me todo o passado dela. Eu tinha de entregar-lhe alguma coisa que fosse inútil e indispensável. Dei-lhe uma das caixas de sapatos dela. Ela perguntou-me:
– O que é que está aqui dentro?
E eu respondi:
– Aqui dentro está o futuro da senhora.
Ela saiu da loja com a caixa e nunca mais voltou.

5
Toda a gente sabe que é no Inverno que o mar mais falta faz. Estava eu a equilibrar uma prateleira com um calço de cartão, quando senti que a porta se abria a um espírito novo. Fui ao balcão e dei de caras com a alma de um marinheiro sem barco. E a alma foi direita ao assunto.

6
– Tenho saudades do mar, mas não tenho barco – disse o marinheiro.
E eu disse-lhe assim:
– Mas isso é um negócio fácil. Fico com as saudades que me traz. Agora, vê o senhor como chove lá fora? Estenda-se no chão ao comprido e apoie os pés no muro da igreja de S. Bartolomeu. O muro faz de barco. Como agora a chuva lhe há-de vir de lado, faz de mar.

7
O negócio tem-me corrido bem. Consegui contrariar, aliás, os maus augúrios do meu avô materno.
– Nunc’ádes ser nada – dizia-me ele, que jamais tinha sido coisa alguma.
Com o êxito da Casa do Alívio, posso responder-lhe hoje assim:
– Pois não, avô. Mas hei-de ser tudo.

8
O passado daquela senhora de quem vos falei, foi levado porta fora por um viúvo irremediável que se tinha esquecido por completo da falecida. Deixou-me ele, em compensação, uma resma de folhas de papel-químico.

9
Algum tempo depois, recebi, de novo, a visita do viúvo. Por instantes, tive medo de que, pela primeira vez na história da Casa do Alívio, um cliente não tivesse ficado satisfeito. Mas não. O caso é que o viúvo estava contente com o passado novo da sua defunta – só que não tinha saudades. Dei-lhe de borla as saudades do marinheiro, tal foi o meu alívio.

10
À noite, fecho a loja e fico exposto à incerteza de todo o comerciante quando volta ao estatuto de cidadão. Vou à rulote das bifanas, janto mostarda e cerveja e pago a despesa com uma das folhas de papel-químico nas quais, à transparência da contraluz, vou escrevendo e contando estas histórias.


Caramulo, 27 de Outubro de 2006
(para a minha Mãe)

A minha Mãe faz hoje 82 anos: valente, formosa senhora


Hermínia Leite dos Santos

26/10/2006

Miguel Sousa Tavares?

Estou como o Jorge Palma: "Deixa-me rir..."



(ver em http://freedomtocopy.blogspot.com/)

A Senhora da Tabacaria - história 26 do Anoitecer ao Tom Dela

1
A senhora da tabacaria está sentada num banquinho à frente do balcão. O vento agita o estendal de revistas, cachecóis desportivos, postais, jornais e camisolas. Quando chove, a senhora da tabacaria levanta-se do banquinho e recobre o mundo de plásticos. É uma tabacaria de vão de escada. A escada sobe para um gabinete de raios-X e para um escritório de advogado. O vento também entra e também sobe.

2
Os ossos da senhora da tabacaria não precisam de subir ao gabinete de raios-X para que os atravessem o vento e a luz. Se fossem de madeira, os ossos da senhora da tabacaria suportariam uma cabana na neve. E à porta da cabana, num banquinho, a alma da senhora da tabacaria haveria de continuar vigiando o mundo como desde sempre.

3
O mundo visto da tabacaria não vem nas revistas que ela vende. A igreja velha vem nos postais. Vista de lado, a câmara municipal apresenta uma carranca de democracia austera. A loja de música parece-se, na memória, com os suspensórios do falecido senhor que a fundou. A esplanada do café, em dias de sol, formiga de nórdicos ociosos a quem a senhora da tabacaria vende postais e oferece amabilidade.

4
Vistas do céu, a tabacaria e a senhora dela pulsam de cor: só os jornais a pretibranco desmentem a euforia arcoirisdecente das revistas, os azulejos de papel que os postais nasceram para ser e a ondulação dos cachecóis benfica-sporting-porto-académica.

5
A senhora da tabacaria, olhando a praça a partir do seu banquinho cósmico, sabe que o tempo é um rio e que todos são, ou somos, náufragos. O rapaz da Higiene Municipal que se alcooliza na taberna do beco. O homem das farripas coladas a tinta ao crânio que não perde uma revista pornográfica. A mulher da frutaria a quem o marido bate com o cinto. O homossexual pouco discreto que chupa a esferográfica na contemplação dos nórdicos ociosos.

6
Todos os loucos da Baixa da cidade desaguam, manhã cedo e caindo a noite, na tabacaria. A senhora do banquinho conhece-os a todos. Sabe que cada um deles fala um idioma que não é português, mas uma língua própria cuja gramática é a solidão, a miséria, o vinho e a felicidade. A senhora da tabacaria é poliglota. Sentou-se no banquinho e aprendeu de ouvido as línguas do rio.

7
Desce a noite ao mundo, sobe a praça ao céu. A senhora da tabacaria arquiva o estendal. Os santos ilustrados ficam cara a cara com as top-models das telenovelas. Os cachecóis dormem enrolados como serpentes prisioneiras. A senhora da tabacaria encerra o quiosque, o casaco e a jornada. Passa pela frutaria, deixa uma palavra boa à mulher do cinto, leva tangerinas e recolhe ao apartamento caixa-de-fósforos por cima da loja dos 300 chineses.

8
A senhora da tabacaria janta ervas-de-molho, um segmento de bacalhau e uma maçã. Os olhos latejam-lhe como berlindes diabéticos. Deita-se em linha diagonal na cama grená. Pelas frinchas da persiana, o néon da Lua pontua reticências intermináveis. A senhora da tabacaria, ao adormecer, chega-se um pouco para o lado: é preciso dar espaço ao pai dela. Também os mortos têm sono, também os mortos ocupam lugar.

9
De manhã, café-com-leite e uma fatia de pão seco. Casaco, elevador, bons-dias aos chineses sorridentes, beco, praça, tabacaria. Chegam os primeiros loucos. Conversações. A senhora da tabacaria, consultando o céu, hesita quanto a pôr já os plásticos ou não. Começam a passar os velhos para os raios-X. O rio retoma o curso. A senhora da tabacaria senta-se no banquinho.

10
Uma excursão de espanhóis fotografa a igreja velha. O rapaz da Higiene Municipal surge do beco. Um homem com um bandolim quebrado entra na loja de música. O presidente da câmara chega bordo de um carro longo e luzidio como uma enguia. A senhora da tabacaria vende dois jornais desportivos, lembra-se das tangerinas e senta-se no banquinho a descascar uma sem olhar para ela.


Caramulo, tarde de 24 de Outubro de 2006

24/10/2006

Pescador de Pedras – uma Sequência

1
Lá em baixo, os castanheiros.
Subindo um pouco, as tílias.
Um pouco mais, os cedros.
Vista perdida, plátanos,
carvalhos, espanta-lobos,
áceres, amieiros, freixos.

Há pessoas que se perseguem
nos peixes que querem pescar.
Atiradores ao próprio coração
no alto pássaro solitário.
Há coleccionadores de pedras.
Há figuras entre as árvores.

Gente para quem andar vivo
custa mais a perder que a ganhar.
Oram dentro do azeite
aos ícones ribeirinhos.
Assimilam da horta
pesados frutos terrosos.

Pessoas que nunca ganharemos,
que venceremos jamais.
Gente em cujo peito
o ar queima fitas sanguíneas,
em cuja cabeça
a luz queima fitas sanguinolentas.

Como chamar ainda novo
a cada dia, quando mesmas
demoram as árvores, as pessoas?
Proceda o céu a seus numismáticos
coruscantes brilhos – não novo é ele,
nem o caçador, nem o pescador de pedras.

2
Vários homens roucos habitam o meu espelho da barba.
Recorto-as um a um com a lâmina.
O vidro toma simétricas silhuetas de chumbo.
Baixo de olhos fechados à água corrente.

Esparsas mulheres graves embolorecem pelos cantos.
Favorecem de humidade as plantas encerradas.
Arredo-as com as mãos como a cortinas.
Se lá fora chove, ouço-as que murmuram.

Pago a renda da casa a esta malta toda.

3
São estes os trabalhos, estes os dias.
Transvazam uns em os outros.
Alimentam-se da carne da figura.
Somem a saúde e a loucura.

4
Era um homem que já estava no futuro
– onde os mortos, não no passado, o
esperavam.

5
Mais fria a cama que a noite invernia,
mais quente a lua que o sol aparecia.

6
Esperava o comboio subterrâneo na noite de domingo. Tinha nascido para cruzar os mares, vivia de esperar comboios subterrâneos, apanhava o comboio, seguia por algum mar. E também o mar era subterrâneo. E no fundo do mar estavam as pedras dele, os pescadores dele e as árvores dele.



Caramulo, tarde de 23 de Outubro de 2006

19/10/2006

Uma mais Duas Medusas

Nasce escura de chuva a nova manhã.
Aves e árvores: tintas-da-China em pergaminho.
Solta o vento sua voz transparente.
Revoa a rua de folhas moribundas, lama
vegetal entorpece de cálcio a calçada.

Este é todo o tempo do homem.
Cargas de areia pingam de interstícios metálicos,
passando as camionetas do mundo civil.
Dentro do café vazio arrefece a velha.
Todos enviuvamos do dia de ontem.

Só as crianças são o apesar-de-tudo.
Ouço-as guelrando do escuro da sala.
Deito-me tarde e acordo cedo na antemão
do que já é. Oblongos canivetes d'água
talham figurinhas no ar de grés.

É bela, ó Mãe, a minha vida: linguajo
meteorologias, sejam mornas sejam frias
as manhãs, depois da tua pessoa. A vida
é boa - vê como gingam, marinheiros,
os castanheiros.

Este é todo o tempo do filho.
Tenho escrito histórias cada dia.
Desparadrapo-me das peias malévolas
de quem não sabe amar o tempo,
o Tempo. Eu tenho andado bem e muito.

Tenho o coração num alguidar, a faca
ao lado, na varanda. Quando diagonal,
a chuva demolha faca, alguidar e coração.
Do escuro da sala, dissipadas as crianças
sonoras que, como areia, pingues, passaram,

aqueço ao bafo dos meus versos o grés
humano da minha vida, hoje. Este é
todo o tempo do pai. As minhas meninas,
esses jogos florais que pratiquei em
duas noites espermáticas, sobem no ar.

Medusas a quem dedico estas quintilhas.
Portadoras de aquaçúcar óptico,
manuseadoras de tintas-da-China,
infantis velhotas da minha, um dia,
aposentação, quando de novo nascurecer.



Caramulo, há bocadito, tarde de 19 de Outubro de 2006

O Alberto das Duas - história 23 do Anoitecer ao Tom Dela

Esta noite, entre as 22 e as 23h00 em 91.2 FM ou, pela net, em www.emissoradasbeiras.com (também há acesso por http://www.radio.com.pt/ -Distrito Viseu, Concelho Tondela, Emissora das Beiras).
1
Era uma vez um homem pobre que gostava muito de uma mulher que também era pobre. Por causa da pobreza, o homem casou-se com uma mulher que era rica e começou a gostar dela. A mulher que era pobre esperou mais dois anos e casou-se com um homem rico. Os quatro viviam na mesma terra e na mesma rua.

2
Ao todo, os dois casais fizeram sete filhos – e os sete filhos eram todos parecidos uns com os outros. Chegou então ao mundo um Inverno mais duro que de costume. O homem rico começou a sofrer da próstata. O médico, por distracção, disse-lhe que ele ia sobreviver. E que ia ficar estéril.

3
O homem rico ficou estéril. Depois, não sobreviveu. Aquilo da próstata complicou-se e acabou com ele ao cabo de meio ano. A mulher que tinha sido pobre tornou-se viúva remediada. Foi vendendo as courelas uma a uma para sustentar os filhos. Até que ficou pobre outra vez.

4
O homem que tinha sido pobre teve pena dela e disse à esposa que começasse a comprar o dobro da mercearia: dois sabões, dois pães de quilo, dois quilos de açúcar e por aí adiante. Aos sábados de manhã, o homem ia a casa da vizinha, depositava o saco das compras na banca da cozinha e aceitava uma chávena-almoçadeira cheia de café de mistura.

5
Os sete filhos cresceram tudo o que tinham de crescer e foram-se às vidas deles. O homem começou a almoçar aos sábados na casa da outra mulher. Se chovia, ficava para jantar. Passados uns tempos, já só voltava a casa na segunda-feira.

6
Às vezes, a esposa vinha à varanda e chamava-o para que fosse atender o telefone. Então, o homem chamou a Companhia e mandou instalar um telefone na sua casa dos fins-de-semana.

7
O homem chamava-se Alberto. O povo começou a chamar-lhe “O Alberto das Duas”. E ele ria-se porque gostava da alcunha. E porque, de facto, gostava das duas.

8
O padre da freguesia ainda mandou umas “bocas”, mas teve de se calar porque o Alberto das Duas disse em voz alta, no bar da Associação, que a irmã do padre era tão irmã do padre como do Papa.
9
O tempo passou com suavidade e constância. A legítima do Alberto adoeceu de um peito e deixou de respirar à chegada do Outono. O Alberto das Duas passou a ser conhecido como “o Alberto da Metade”. Desta alcunha, o homem já não gostou. De modo que lhe deu para entristecer e morreu na noite de Ano Novo.

10
A outra mulher deixou-se ficar. Como o Alberto lhe tinha comprado as courelas de volta, foi-as vendendo uma a uma outra vez para se sustentar. Ainda lhe faltava vender duas quando a irmã do padre morreu. Então, o padre chamou-a para junto dele e ela foi e nunca mais se falou no assunto, pronto.


Caramulo, tarde de 18 de Outubro de 2006

Rimas de Graça para a minha Cunhada Idem

Ao balcão do peixe frito entre queijo e salpicão,
sou feliz ouvindo os homens de humilde condição.
Chove lá fora ond'outrora brilhou já o sol.
Aluada anilada lua pulsa de prata o arrebol.
Da rádio, entr'as garrafas de ponche, madeira e anis,
vem soando um fado rouco: e esse pouco me faz feliz.



Caramulo, anoitecer de 18 de Outubro de 2006

O “Frigorífico” - história 22 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Era uma vez um bosque de choupos e canas-da-Índia onde havia um poço natural de água álgida e verde a que chamávamos “O Frigorífico”. Árvores caídas serviam-nos de trampolins. Mergulhávamos n’O Frigorífico em plena nudez: como se fôramos folhas; ou frutos; ou flores.

2
Naquele tempo, éramos tão juvenis como os primeiros minutos da manhã. Éramos rapazes, filhos do Homem, filhos da Mulher e filhos do próprio Tempo, que, naquele tempo, se disfarçava de Bosque.

3
Hoje, as crianças nascem dentro de consolas electrónicas. Mesmo acontecendo portuguesas, as crianças de hoje vivem no Japão e na América ao mesmo tempo. Não podem nadar nuas nem aprender a própria sexualidade pela genitália alheia dos nadadores – como acontecia, naquele tempo, n’O Frigorífico.

4
As sapatilhas eram sapatilhas, não se chamavam “ténis”. Calçávamos as sapatilhas à saída da água. Os pés secavam dentro da lona e da borracha. De regresso a casa, pelo Campo, roubávamos fruta que depois era rilhada por dentes naturais. Era o tempo antes das próteses acrílicas, era o tempo antes do adultério e da fábrica e dos filhos nipónico-americanos.

5
De repente, sem avisar, um de nós fez 19 anos. O outro ao lado também. E o outro também. E eu também. E o outro também. E tu também. E depois tu fizeste 26 – e nós todos também – e mais 16. tornámo-nos órfãos velhos que sabem nadar mas nunca nadam.

6
Um dos nadadores tornou-se merceeiro. A sogra passou a mercearia à filha e a filha passou-se para ele. Ele cuida do balcão de mármore (vinhos e petiscos), ela cuida da farinha, do óleo alimentar, do sabão, dos caramelos e das conservas. Outro dos nadadores fez-se electricista de automóveis e casou-se com uma contínua da escola preparatória. Eu fiz-me à vida – e até hoje nada, nadador.

7
Natal sim, Páscoa não, volto à terra. Não volto ao bosque. Volto à terra. Mordo uns tremoços, jogo bilhar, oiço dizer, digo pouco ou nada. E nada, nadador.

8
Falhei a admissão à Marinha por causa dos dentes. Cumpri a Infantaria, não concorri à GNR, sobrevivi a um casamento rápido com uma divorciada que voltou a sê-lo, estive no Algarve como segurança de um bar ranhoso e manhoso e agora não sei como é que há-de ser.

9
Não sei por que razão a vida só tem um filme de jeito no princípio e depois nos obriga a vender pipocas e farturas durante o resto da sessão. O meu filme chama-se “O Frigorífico” e foi um desastre comercial. Nem a rapariga da bilheteira me conhece.

10
Só volto ao bosque quando se faz noite. Estou outra vez nu. Ligo o rádio e meto-me na cama. Só é preciso fechar os olhos. A música é toda feita de flautas de vento nos choupos e nas canas-da-Índia. A água é verde. As árvores tombadas servem de trampolins. Sonho com fruta, acordo com frio, a vida é bela.


Caramulo, tarde de 17 de Outubro de 2006

O Pessegueiro - história 21 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Lá no fundo, lá bem no fundo da minha vida, está um pessegueiro. Não era uma árvore firme, nem frondosa, nem sólida. Pelo contrário, sofria de um raquitismo que o vento só poupava por pura misericórdia. Dava à luz uns pêssegos enfezados e ferrugentos de que eu, apesar de tudo, gostava muito, a ponto de nem os deixar amadurecer.

2
Depois, o acne e o amor pelos sonetos removeram-me de vez da infância. Abandonei o quintal, apanhei o autocarro e dei com os ossos na Biblioteca Municipal, onde consumi tardes e tardes de chuva dividido entre Luiz Vaz de Camões e a senhora Agatha Christie. E a minha vida foi-se tornando num combustível do Inverno.

3
Aos 17 anos, apaixonei-me com as pilhas todas por uma rapariga muito bonita e muito católica. Cheguei a vestir umas calças brancas por causa dela. Consegui alguns beijos e alguns passeios pelas áleas novecentistas do Jardim Botânico. Martirizei-a com Camões e sem hesitação. E depois casei-me com outra.

4
Numa livraria da cidade marítima em que vivi poucos anos, descobri os livros de João Camilo e de António Osório. Estava eu a ler um desses livros num café que hoje é um stand de automóveis, quando um homem, um rapaz e uma mulher me abordaram. Eram espanhóis de Pamplona e precisavam urgentemente de alguém que entendesse um pouco de castelhano e que os levasse à morgue, primeiro, e à polícia, depois.

5
O caso deles era triste e humano como os versos que eu lia. O pai do rapaz e irmão dos adultos era camionista de longo curso. Tinha morrido na véspera no acesso à ponte da cidade. O corpo estava na morgue do hospital. A documentação estava na polícia. Fechei o livro e fui ajudá-los.

6
O homem chamava-se Cándido. A mulher chamava-se Carmen. O rapaz chamava-se Jelaber. Esqueci o nome do morto. Também esqueci o nome da viúva, que chegou nessa noite arruinada pelas lágrimas e pela solidão invencível da viuvez a estrear. Indiquei-lhes uma pensão decente e convidei-os para jantar num restaurante que servia frango à moçambicana.

7
No fim da refeição, as senhoras recolheram-se ao quarto. Eu, o rapaz e o homem fomos beber tudo o que havia para beber na cidade. O rapaz adormeceu ao quarto copo. Expliquei ao dono da casa o que se passava, e ele deixou o rapaz dormir, pela primeira vez em 24 horas, imune à dor do pai. Não sei porquê, contei a Cándido do meu pessegueiro.

8
No dia seguinte, pela tarde, levaram o morto para terras de Navarra. Ainda trocámos algumas cartas e outras tantas saudades. Os anos passaram como transatlânticos: altos e à flor das profundezas. Entretanto, descobri os livros de Nicholas Freeling e de Manuel Vásquez Montalbán. E continuei a afastar-me do pessegueiro.

9
Voltei ao quintal por ocasião da doença final de meu Pai. Não havia nada a fazer senão o balanço, a espera e a conta. Ele apagou-se como uma vela. Ajudei a recolher a cera endurecida e o pavio quebrado. No meu quarto de solteiro, não pude deixar de sorrir à recordação d’“aquela triste e leda madrugada” de 11 de Fevereiro de 1983, quando o meu Pai me acordou para ir ver a neve.

10
Na madrugada de 11 de Fevereiro de 1983, nevou em Coimbra como não havia memória. Era a neve de Camões: o manto frio que adormecia a erva e a vida e o tempo. Nas traseiras do prédio, o monte parecia um espinhaço de cão congelado. Então sim! Ah sim, então sim: o pessegueiro, suportando nos braços o peso de renda da neve, aparecia finalmente – e para sempre – como uma árvore tão sólida, tão frondosa e tão firme, que nenhum vento poderia derrubá-lo jamais.

Caramulo, tarde de 17 de Outubro de 2006

17/10/2006

O Nevoeiro - história 20 do Anoitecer ao Tom Dela

Esta noite, entre as 22 e as 23h00 em 91.2 FM ou, pela net, em http://www.radio.com.pt/ (Distrito Viseu, Concelho Tondela, Emissora das Beiras)



1
O Purgatório pode ter sido abandonado pela Igreja como apeadeiro entre o Céu, a subir, e o Inferno, a descer. Mas não foi abandonado pelos homens nem pelas mulheres que vivem na serra. Porque, na serra, o Purgatório chama-se – Nevoeiro.

2
Ou o Céu desce ou a Terra sobe. Ou ambas as coisas, num beijo húmido, gasoso e meteorológico. Mas o resultado é mais do que simples névoa. É uma luz glauca onde as pessoas, os animais e as árvores se tornam fantasmas. E onde os fantasmas se tornam árvores, animais – e pessoas.

3
O nevoeiro cerra a vida, o dia e a noite. Não há para onde ir, não há de onde vir. Estamos e somos. E depois perdemo-nos no nevoeiro.

4
Há homens que se perdem. Enganam-se nas portas. São electricistas e entram nas lojas. Trabalham ao balcão, atendendo ninguém. Há mulheres que se perdem. São cabeleireiras e entram nos Correios. Vendem selos aos fantasmas da tuberculose que há quarenta anos não escreviam para casa.

5
Eu trabalho na rádio, mas já me aconteceu passar noites seguidas na padaria embrulhando farinha e lume num ritual antigo e desolado. Quando faz sol, volto para casa com uma história atrasada.

6
Dois amigos do meu vizinho tiveram a ideia de visitá-lo. Estava um nevoeiro completamente purgatório. As almas tinham operado a substituição dos pássaros. Os dois amigos perderam-se, tiveram de trabalhar quatro dias como electricistas e só abandonaram esta história quando fez sol.

7
A chuva é uma coisa completamente diferente. Também se trata do Céu a descer, mas já não da Terra a subir. Quando chove, a Terra aguenta firme. Pessoas, animais, árvores e fantasmas molham o pescoço, encharcam a boca e tremem a partir dos pés. Mas é diferente.

8
Nós estamos aqui à espera do sol para que nos seja possível voltar a casa, depois ao trabalho, depois ao café – e depois a casa. Acreditamos naquilo que a vista nos nega – o Céu e o Inferno. Mas é nossa condição o Purgatório.

9
Em casa, cerramos as persianas, trancamos os caixilhos, ferrolhamos as portas e abrimos o lume. Ingerimos devagar o caldo nutritivo. Guardamos as sobras do pão. Acumulamos bolachas e latas de sardinha. Estamos preparados para tudo.

10
Estamos preparados para tudo – até que o nevoeiro volte com suas amáveis mandíbulas. Em casa, ao lume, revistamos postais das Antilhas que os electricistas da terra, por se terem enganado de porta, puderam frequentar sem ofensa e sem memória.




Caramulo, noite de 16 de Outubro de 2006

16/10/2006

Relatório Breve

Não entendo a literatura (muito em particular, a poesia) como uma mensagem, no sentido de recado. Entendo-a (e pratico-a) como relatório. Resultado inicial, não final, das transformações que as coisas do mundo sofrem no interior disto: o meu corpo. Quanto às transformações, para fora, do meu próprio corpo, essas serão do foro clínico. Não têm qualquer interesse, excepto talvez o de trazerem consigo (aí sim) recados da vida, do tempo e da morte.

Caramulo, 14h58m da tarde de sábado, 14 de Outubro de 2006

Duas Vezes uma Rosa na Estrela

Numa viagem recente, de Seia ao Sabugueiro, foi-me oferecido um dia de sol como não esperava. Antes da chegada ao Sabugueiro (terra horrível, um tipo horrendo, comércio horroroso, expedição horrífica, momento horripilante), vi uma flor avançando na luz. Tomei nota dela:


Uma rosa de pé alto singrava no ar uma
nota de cor perfeitamente audível.




Já no Sabugueiro (que detestei deveras, espécie de terriola onzeneira, tipo-fátima-das peles, tipo nazaré-dos-queijos), à saída do carro, uma quadra forjou-se-me sem aviso:


Minha vida é mentirosa
meu trabalho é verdadeiro
verdadeira minha rosa
aldrabão o meu canteiro.




E foi isto, na


Tarde de 12 de Outubro de 2006

Rimanço do Buíça

Chamo-m’António Buíça
nunca na vida matei
vou’strear-me na matança
vou matar o nosso Rei.

Vai ser a 1 de F’v’reiro
ano oito secular
depois diga o povo inteiro
se fiz bem em no matar.



Viagem Caramulo-Seia, noite de 11 de Outubro de 2006

É Mesmo Assim

Amigo
é uma despesa que não aceita prestações
é um crédito pago à cabeça tronco membros e colhões.

Inimigo
é uma despesa que não aceita prestações
é um crédito pago à cabeça tronco membros e colhões.



Caramulo, tarde de 11 de Outubro de 2006

À Varanda Fumo a Lua (canção astrortícola)

Ond’é que eu fui feliz
por quem por causa de quê
muito conta quem não diz
muito conta quem não lê
É feliz quem esquece tudo
quanto não lembr’ao Diabo
o calado faz-se surdo
o surdo faz-se de nabo.

Tenho a têv’estragada
não sintonizo o canal
minha vid’avariada
vezes bem e outras mal
À varanda fumo a Lua
que eu pedi o lume ao Sol
na mortalha dorme nua
minha víscer’a mais mole

Minha qu’rida coisa linda
dá-m’o seio a sugar
amant’é a mãe ainda
mais o pai a vigiar
A gent’é pobre pobrezinha
arrecad’ò our’amor
na lata lá da cozinha
mesmo q’apanhe bolor

Ai ond’é que eu fui feliz
não alembra ò Diabo
meu coração faz-se surdo
faz-se surdo e faz-se nabo.




Viagem Caramulo-Seia, tarde de 11 de Outubro de 2006

A Tempo - história 18 do Anoitecer ao Tom Dela

1
O meu amigo João Jorge, durante muitos anos, fez tudo aquilo que se esperava dele. Comeu a sopa, aprendeu a andar de bicicleta, acabou o 9º ano, experimentou o primeiro sexo com um rapaz francês e casou-se com a Gracinda, para bel-prazer de ambas as famílias.

2
Dividiu com o irmão Armando os élepês dos Yes, dos Genesis, dos Emerson, Lake & Palmer e do Mike Oldfield. Deu a bicicleta ao 14º filho da família mais pobre da aldeia e do mundo. Pegou na Gracinda, fez-lhe um filho rapaz e alou para França.

3
Arranjou trabalho, a 16 quilómetros de Montpellier. Como era um belíssimo bate-chapas, forrou dinheiro ao monte. Todos os meses chegava à aldeia e à Gracinda um belo cheque francês. O meu amigo João Jorge esteve três anos sem cá vir. O problema foi quando a Gracinda apareceu grávida.

4
O Armando estava a beber umas cervejas com o pessoal nessa noite de sexta-feira. A mulher do café, gulosa de notícias e jornalista da desgraça, quis ser a primeira a contar-lhe. E foi. Contou-lhe que a cunhada estava “pranha” e como é que isso podia ser. E não podia.

5
A minha mágoa, ainda hoje e para sempre, é não ter lá estado nessa noite negra e vermelha. Ninguém segurou o Armando. Saiu no mau minuto dessa hora má, colheu do chão um calhau final e foi rebentar a cabeça da Gracinda à frente do menino.

6
Havia uma mentira e duas verdades. A Gracinda não estava grávida. Tinha um tumor no útero do tamanho de uma bola de andebol. Essa era a mentira e a primeira verdade. A segunda verdade era que era amante de um fulano do stand de automóveis da zona industrial.

7
Tiveram de telefonar ao meu amigo João Jorge. Um telefonema para França era muito caro, mas ninguém olhou a despesas. Disseram-lhe que a mulher estava morta, e porquê, e que o irmão estava preso, e porquê. O João Jorge veio. Não quis assistir ao funeral. Também não pôde matar o gajo do stand, que tinha fugido para o Algarve. Só pôde visitar o irmão na cadeia.

8
O João Jorge voltou para França. Continuou a mandar dinheiro todos os meses. Agora, o cheque vinha para a cunhada. A mulher do Armando perfilhou o menino do João Jorge e da Gracinda. O Armando apanhou oito anos.

9
Ao fim de cinco anos e meio, o Armando foi libertado por bom comportamento. Mas já não era o mesmo homem. Falava constantemente do assunto. Dizia outra e outra vez onde tinha pegado no calhau, quantas vezes dera com ele na cabeça da Gracinda, e porquê.

10
Os anos passaram muito depressa para uns e tão devagar para outros. O Armando morreu alcoólico. O João Jorge voltou com uma reforma boa. Casou-se com a cunhada, que nunca pôde ter filhos. Também teve um tumor no útero, mas foi operada a tempo.


Caramulo, tarde de 11 de Outubro de 2006

As Casas - história 17 do Anoitecer ao Tom Dela

1
A minha primeira casa era ao pé de um monte. Lá em cima, no picoto do monte, alvejava um marco geodésico que me disseram ser constante dos azimutes militares. Eu trepava ao marco e tornava-me príncipe instantâneo urbi et orbi. O mundo era redondo e vertiginoso. O mundo, nessa altura, não era apenas muito belo. O mundo era possível.

2
Uma noite, perdi-me no regresso a casa. Nunca mais a encontrei. Mas, como então era muito jovem, não me importei. Junto à fábrica de porcelanas, dentro de um carro branco, estava uma mulher. Dei dois nós de dedos na vidraça. Ela fez com a cabeça que eu entrasse. Entrei. Ela pôs o carro a trabalhar e levou-me para a minha segunda casa.

3
A minha segunda casa era num bairro de casas iguais. Dentro delas, moravam casais iguais àquele de que eu era agora metade. Criancinhas siamesas chilreavam, muito urbanas, no parque infantil. No campo de jogos, adolescentes e quarentões escoicinhavam uma bola. O mês de Janeiro era igual a Maio e era igual a Outubro.

4
Naturalmente, inevitavelmente, também me perdi, uma noite, quando fingia regressar a casa. Havia, depois da biblioteca, uma colina relvada. Depois da colina, subindo um pouco, era o mar. Na praia, soluçando sem som, estava um barco lacado pela Lua. Embarquei.

5
Quantos anos terei navegado, não os posso contar. Vi o lombo lustral do golfinho, assisti à cutelaria aérea dos peixes-voadores, senti do cachalote a solidão montanhosa. Aportei a uma aldeia tão branca, que a cal doía nos olhos. Por me ter parecido que a vida poderia voltar a ser uma espécie de perpétuo meio-dia, fiquei. Um homem igual a mim como um pai juvenil pegou no meu barco e partiu.

6
Nessa aldeia, estabeleci a minha terceira casa. Todas as mulheres desse lugar mais marítimo que terreno eram dotadas de olhos verdes. Arranjei uma para mim e levei-a para casa. No rés-do-chão, uma loja vendia tudo: velas, redes, candeeiros, sabão, mel, carne e fruta enlatadas, lápis, selos, botas de borracha, aguardente, livros, esfregões, azulejos, papel.

7
Desci à loja, comprei lápis, papel e aguardente. Subi a casa e demorei anos. Uma noite, a mulher perdeu-se no regresso a casa. Procurei-a por toda a aldeia. Na praia, um pescador mais velho do que as marés disse-me que um homem igual a mim a tinha vindo buscar no meu barco.

8
Virei as costas ao mar e subi ao promontório. Por um momento mágico e mortífero, eu estava no picoto do monte, a cavalo do marco geodésico. A diferença era a tristeza.

9
Continuei continente adentro. Vi feras furtivas e proibidas. Vi homens hirsutos como escovas. Bebi água aquecida ao sol em taças de lama. As minhas unhas adquiriram o carácter peremptório de canivetes. Finalmente, cheguei. Aonde, não sei.

10
Estou aqui. Acho que me sinto bem. Ouço o rio, mas nunca o vi. Não deve ser longe: vejo os pássaros que descem em flecha para depois subirem com um peixe vivo no bico. A minha última casa é o meu corpo. A minha memória brilha de janelas. A diferença, não sei porquê, continua a ser a tristeza de inquilino no pátio traseiro de si mesmo.


Caramulo, tarde de 11 de Outubro de 2006

Pré-Sono

Guarda-s’o corpo em cobertores
fiando-s’em finlândias talvez
adormecendo vêm estertores
alba do dia mais o fim do mês

Não existindo mel de derrame
nem para tal havend’abelhas
quem amor tiver pois que bem no ame
abaix’a boca acim’as orelhas

Rest’é licor propiciatório
do empurrão liquefactor
há quem no dig’orgasmatório
e há ‘té quem lhe cham’amor

Guarda-s’a alma em mantas enxutas
peludas rugosas dobradas na cama
amor não se deita só com quem no ama:
só na minha rua moram trinta putas.



Caramulo, noite de 9 de Outubro de 2006
(excepto última quadra: Caramulo, tarde de 15 de Outubro de 2006)

Cançoneta Retroactiva e Portuguesa

Já defrontei o mar
com peito de frango
serras quis serrar
picotar de morango

Aldeias cruzei
branquinhas do sul
pintadas eu sei
cumbarras de azul

E o povo coitado
é só rés-do-chão
tão massificado
é corn’e cabrão

É porco é burro
carneiro deitado
em cheirand’a esturro
vota no queimado

O pov’é’ma merda
e contra mim falo
o cerd’e a cerda
a égu’o cavalo

Quero água fresca
vinho de tostão
um’alma fradesca
sem religião

Um sino que dobre
em sinal de nada
com’omem que cobre
mulher e mais nada

Loucinha de canja
sem senhorial
galinha de franja
galo pentotal

Não queir’o vizinho
dizer mal do cão
ladrar tão baixinho
faz bem ò ladrão
À praia não volto
nem à meninice
eu não me revolto
‘tá dito já disse.



Caramulo, noite de 9 de Outubro de 2006

Revisão

Ulisses, depois de onze anos, decide
deixar de novo Penélope.
E Penélope:
– Nem haverias de ter voltado,
cabrão de merda.



Caramulo, noite de 9 de Outubro de 2006

Alterne

Nenhuma menina quis ser put’algum dia
como vers’algum quis ser menos qu’o já escrito.
Verso algum vale o qu’ma menina valeria
não for’o comércio dar dito por pito.

Elas dão d’alterne palit’espumante.
E são de Goiás, Budapest’Amarante.
Nosso macho povo acode fremente:
foder não fode, mas sente-se gente.



Caramulo, noite de 9 de Outubro de 2006

O Muro - história 1 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Estão sentados num muro baixo dois homens. Os dois homens são indivíduos normais. O muro é que não é nada normal. Quer dizer, em si mesmo é um muro normalíssimo: tijolo colado a cimento e pintado a branco. O insólito é tratar-se de um muro que separa nada de coisa nenhuma. Um muro edificado no meio de um descampado. Um muro sem uma casa-jardim atrás e sem uma estrada à frente.

2
Um dos homens sentados naquele muro estranho fala. Diz ele:
– Isto é como estar sentado em cima de uma história.
E o outro, que é mais velho, responde:
– Sim, uma história que não deveria nunca ter acontecido.

3
Está calor. É uma tarde de sol branco que faz sede até aos olhos. Em cima do muro, o homem mais velho diz:
– Não se deve começar uma casa pelo telhado. Mas por um muro também não.
E o outro homem concorda:
– Isso é muito verdade. Isso é mesmo muito verdade.

4
Quinze anos antes desta conversa, tinha acontecido a história. Um casal estava no centro dos acontecimentos. Uma mulher, depois de enviuvar, tinha-se entendido com o professor primário da terra, que era muito novo e muito solteiro. Para calarem o povo, casaram-se. Ela já tinha uma casa, mas ele quis construir outra.

5
Ele quis construir outra para não ter de morar onde o outro tinha vivido; onde o outro tinha, talvez, sido feliz; e onde o outro tinha morrido. A mulher teimou que não. O homem teimou que sim.

6
O que aconteceu depois foi isto: a mulher vivia na casa que já era dela, mas o marido professor continuava na pensão da vila. A mulher era dona de um terreno descampado à saída da localidade. Era terra seca, sem água por baixo nem por perto. Foi aí que ele começou e acabou o muro.

7
De regresso ao presente, estão os dois homens sentados no muro branco, de costas para a terra vazia. Diz o mais novo:
– Há ideias que ganham mais força do que o juízo.
Responde o mais velho:
– Isso é muito verdade. Isso é mesmo muito verdade.

8
O professor, quando acabou de fazer o muro, foi ter com a mulher e disse-lhe assim:
– Tens ali um muro. Ou passas comigo para o lado de lá e fazemos lá uma casa nova, ou ficas do lado de cá e nunca mais nos juntamos.

9
Nunca mais se juntaram. Passaram dois, quatro, cinco anos. A mulher morreu, mas não sem antes deixar em testamento a casa à filha do falecido. O homem herdou o muro. Um dia, foi-se embora e nunca mais voltou.

10
Passaram mais anos até que veio o dia em que dois homens se sentaram no muro. Diz o mais novo:
– Compadre, você fazia aqui uma casa?
Responde o mais velho:
– Eu não. Já tenho casa que chegue.




Caramulo, tarde de 1 de Setembro de 2006

14/10/2006

A Noiva - história 19 do Anoitecer ao Tom Dela


1
À hora de almoço, antes da sopa, tive uma ideia para mais uma história. Era mais uma visão do que uma ideia: num jardim-cemitério, uma mulher vestida de noiva vista de costas. Era uma imagem forte, paradoxal o suficiente para me levar à luta. Um frémito de alegria atou um nó no meu estômago, como sempre acontece que sou visitado por uma imagem, ou um verso, ou uma rosa do género.

2
À minha frente, a produtora do programa já içava a sopa à boca. Contei-lhe a visão e disse-lhe que pensava escrever a história desta noite a partir da noiva entre campas e jazigos. Ela, então, entre duas colheradas fumegantes, esvaziou-me sem piedade. Disse-me ela: “Mas essa história aconteceu mesmo.” Eu ainda tentei resistir: “Mas ainda não é uma história. Ainda é só uma espécie de epifania!” Então, ela contou-me a história.

3
Aqui há uns anos, um rapaz e uma rapariga marcaram casamento. Trataram das coisas comuns que havia a tratar. Quanto às particulares, trataram-nas particularmente. Ela arranjou um vestido branco. Ele mandou fazer um fato noutra cidade. Um dia antes do domingo marcado, o noivo meteu-se no carro e foi buscar o fato. Nunca mais voltou.

4
Nunca mais voltou – não porque se tenha arrependido, desistido e fugido. Nunca mais voltou porque teve um acidente mortal na estrada. Em casa, solteira ainda e para sempre, a rapariga ria-se com as amigas experimentando as rendas brancas, o branco chapéu, a cauda nívea do vestido inicial.

5
Quando a notícia chegou com a morte pela mão, a rapariga viu-se sozinha numa praia com muito mais areia do que mar. Só se apercebeu do mar pelo som dentro da cabeça: uma espécie de asma eléctrica que se ouvia em espiral, dentro da cabeça, em espiral, dentro da cabeça, abafando o coração.

6
Desmaiou, levaram-na para a cama, chamaram um médico. Ninguém se lembrou de que ela continuava vestida de noiva. Conseguiram acordá-la por alguns instantes, o tempo suficiente para engolir dois comprimidos com um pouco de chá de folha de laranjeira. No dia seguinte, o domingo continuava marcado.

7
O sol cegava na cal da igreja. A multidão enegrecia de roupa a própria sombra. Rezada a missa de corpo presente, trouxeram para a luz inclemente a urna. As flores sufocavam o carro fúnebre. Então, alguém gemeu de surpresa. E depois o silêncio ferrou os colmilhos na multidão: ela tinha aparecido para acompanhar o funeral. Sempre vestida de noiva.

8
Ninguém sabia o que fazer, de modo que ninguém fez nada. Ela tinha um ar calmo. Aceitou um lugar no banco de trás do carro fúnebre e esperou. Já então, ela era especialista na difícil arte da espera que se chama desespero.

9
No fim do enterro, trouxeram-na para casa. A mãe e as irmãs conseguiram que despisse por si mesma o vestido de casamento. Dobrou-o muito bem dobrado e guardou-o na caixa. Depois, guardou a caixa no armário alto. Guardou o chapéu na caixa própria. Depois, guardou também essa caixa. Sentou-se na cama e sorriu um pouco.

10
Ela celebra, até hoje, o aniversário do seu casamento. Veste-se de noiva e vai ao cemitério. Depois, volta para casa, despe-se sozinha, guarda o vestido na caixa, guarda a caixa no armário, guarda o chapéu na caixa, guarda a caixa no armário. E depois fica à espera mais um ano.




Caramulo, tarde de 13 de Outubro de 2006

11/10/2006

Algumas Vidas para Troca Desta

1

Detalhada circunstância tenho dado
de uma vida tão co’a minha parecida,
que nem parece, a própria vida,
passar de si mesma ao lado.

Talvez eu ainda viva muito, talvez
um dia eu viva outra vez.

2

O meu Pai colheu para mim uma maçã silvestre.
A maçã trazia o cheiro da mão dele.
Às vezes levanto a minha mão à cara:
e ele vive outra vez, eu juro que vive.

3

Tu es parti.
Tu es partout.

4

My life shall never fail
but me.

5

Eu vi a pureza em um antro sórdido.
Cascas vegetais e plásticas juncavam o chão.
Disponho d’um coração seguramente já ido
mas disponho de um coração.

Beijo muito a minha gata, que se rebela.
Estendo na sala um augúrio horizontal.
Perguntam-me p’la vida, ‘tão como vai ela.
Digo desandando que vai menos mal.

Eu vi muitas coisas, algumas das quais
morreram na praia, a qual fervia
de vidas e mortes sempre tão ‘sponsais,
que amavam à noite o ódio do dia.

Eu agora não sei, eu digo “eu agora”.
Lisboa é j’ali, mais acim’a Europa.
Já fui homem verde quand’andei na tropa.
Ai logo qu’eu pude, vim-m’eu logo embora.

Decerto fiz mal, que hoj’eu podia
ser l’até quiçá capitão.
Mas morri na praia, a tal que fervia
tão sórdid’e pura com’um coração.

6

Mais teimos’é o amor do que o amante.
Existe e persiste contr’a reforma fiscal.
Os cornos insistem marrar adiante.
E o rabo compulsa a caca final.

7

Mas de vida falávamos, não era tal assim?
De viva vivida por ti e por mim.
Coisas de comboios, empregos, desditas.
Horas graciosas de rosas aflitas.

Possa quem puder, sej’om’ou mulher.
Possa quem de si ter carga de pranto.
Eu nasci de dia mas a noit’entretanto
faz d’um homem noite, dia se quiser.

8

Na noite fechada de cada um si mesmo,
luzitas pipilam o longo corredor.
Palpitam as leis, instituem a esmo
o que já se sabia por ódi’amor.
Um hom’é um homem. Mulher é bem mais.
É mãe e, viúva, legisla por pais.

9

Quanto quer a vida airosa
cobrar juros ao futuro?
Tira pétal’à tu’ rosa.
Espinho fura fino e duro.

10

O meu Pai fez uma vez cinquenta anos.
Eu olhei para ele sem me aperceber da
tempestade que aí vinha.
Todo o Pai é uma vitivinicultura:
homens e mulheres trabalham para colhê-lo.
As mãos do meu Pai cheiravam a
maçãs de vinho dourado.
Dourado e silvestre.
Eu às vezes levo a mão à cara e
digo: o meu Pai é um sítio onde
estive.
E ele vive outra vez, eu juro que vive.





Caramulo, tarde de 10 de Outubro de 2006

10/10/2006

Fazenda Caramulo - história 16 do Anoitecer ao Tom Dela

Esta noite, em 91.2 FM ou, pela net, em http://www.radio.com.pt/ (Distrito Viseu, Concelho Tondela, Emissora das Beiras)
Fazenda Caramulo
1
Era um homem para quem até o dia de hoje pertencia a outro tempo. Usava olhos castanhos e sapatos pretos. Limpava as unhas com um escrúpulo de joalheiro. Conhecia o País de norte a sul porque era representante de uma casa de fazendas. Não precisava da agenda para reconhecer um alfaiate pelo primeiro e último nomes. Ele não tinha nome: era “o homem das fazendas”.

2
Nos primeiros anos, viajava de comboio, tendo assim adquirido a noção de que tudo só existe na volta. Depois, a firma entregou-lhe um carro. A viatura tinha pintada nos flancos de lata esta declaração de guerra:

CASA RAMIRO, FILHO & RAMIRO
FAZENDAS AS MELHORES
DESDE 1898

3
O viajante de fazendas, sozinho ao volante do automóvel, dava-se às vezes ao luxo pobre de inventar para si mesmo outras datas de nascimento. Ele podia ter nascido em 1898, como a firma que representava. Também podia ter nascido em 1911, ano da primeira Constituição depois da monarquia. Ou nove anos depois disso. Ou amanhã – ele podia ter nascido amanhã.

4
O problema era que o dia de hoje se parecia mais com o passado até que o próprio ontem. Ao volante do automóvel, ele ligava Portel a Arraiolos numa tarde de calor insuportável. Depois (ou antes), fazia Covilhã-Guarda como quem bebe um café frio. E a vida, ao contrário das melhores fazendas, não tinha cortes.

5
Para a frente e para trás, anos passaram. A mortalidade infantil baixou nas estatísticas. A balança de pagamentos constipou-se na humidade da tinta dos jornais. Um cantor famoso morreu atropelado por um cidadão anónimo. E na Coreia do Sul continuaram cozinhando cães como nós aqui coelhos.

6)
Certa manhã de primavera, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, conferiu a gravata no espelho retrovisor e deu de caras consigo mesmo. Era a primeira vez que tal acontecia.

7)
Não aconteceu, no imediato, nada de especial. No dia seguinte, como tantos ontens tinha já acontecido, almoçou em Viseu, atento, pela vidraça da casas de pasto, à semelhança dos padres a peões de xadrez amaneirados de bispos.

8
Certa manhã de primavera, no entanto, o representante de fazendas estacionou o carro numa calçada íngreme de Elvas. Tirou do banco de trás a pasta de amostras, mas não precisou de levar três dedos à gravata para saber de antemão quem o esperava no espelho retrovisor.

9
Deixou de ser ele-mesmo. Também deixou a pasta de amostras no banco de trás e a chave na ignição. Em vez de subir dezoito metros até à alfaiataria do senhor Mendes (Albino Mendes – Fatos por Medida desde 1964), ele desceu catorze anos para sul, cortou à esquerda cinco invernos e ficou sem saber que fazer perante o mar.

10
O representante de fazendas teria talvez desaparecido para sempre se não fosse o caso de a nossa reportagem ter dado com ele a pedir cigarros na vila do Caramulo. Era em frente à extinta Pensão Central. Perguntámos-lhe que coisa fazia ele ali.
E ele respondeu:
– Estou à espera que seja outra vez 1920. Tem um cigarrinho?
– Não, mas posso sempre passar por cá amanhã.




Caramulo, tarde de 9 de Outubro de 2006

09/10/2006

Vivenda Lopes - história 7 do Anoitecer ao Tom Dela

1
A história de hoje é tão verdadeira como a de ontem. Aconteceu. Disseram-me que aconteceu. Parece que foi verdade. E então era uma vez. Era uma vez um homem ainda novo que casou cedo com uma mulher pobre. Ela também era nova. E ele também era pobre. Vamos ver todos o que lhes aconteceu.

2
Casaram-se – e a vida não andava. Tinham pouco dinheiro. O futuro parecia-lhes, aos dois, muito mais perigoso do que o passado. Não passavam fome, mas necessidades – ai isso sim, passavam.

3
Vai daí, ele lembrou-se de emigrar para a América. Foi ter com a mulher e teve a conversa do costume:
– Olha, eu vou ali e já venho.
E ela respondeu-lhe assim:
– Ou então vou eu lá ter.

4
E assim foi. E assim tudo foi. Ele embarcou, desembarcou e arranjou trabalho. Passados uns cinco anos, o homem voltou ao país natal, que é o nosso Portugal, e disse assim à mulher:
– Olha, eu vou ter de me casar na América com uma velha. Mas tu ouve isto com atenção.

5
E então ele explicou à mulher. Explicou-lhe muito bem explicadinho. E ela ouviu. E ela escutou. E ela concordou. Ele ia casar-se com uma velha tão rica, que o ouro ao pé da velha perdia valor. E aceitou. Que sim senhor.

6
Divorciaram-se em Portugal. Ele levou a documentação para a América. Quando chegou à América, a velha estava à espera dele. Ele mostrou-lhe os papéis. A velha ficou contente. Passados uns tempos, casaram-se. E foram felizes enquanto esta história não acaba.

7
O homem português e a velha americana casaram-se perante a Lei e perante a Igreja. Ele deixou de ser criado dela. Ela continuou a ser patroa dele. Veio um dia em que ela se queixou da criada de quarto. Então, ele disse-lhe assim:
– Tenho uma prima em Portugal que é muito séria e que dava uma criada porreira.

8
E assim foi. Ele mandou vir a mulher de Portugal. Explicou-lhe tudo muito bem explicadinho. Ela disse que sim. Ele mandou-lhe dólares para o bilhete. Ela entrou no avião, saiu do avião e tornou-se criada.

9
Vinte e dois anos passaram até que a velha morresse. Os dois portugueses esperaram os 22 anos a fio. Quando a velha americana morreu, o viúvo continuava português como um alho. Casou-se com a ex-mulher logo a seguir.

10
Voltaram os dois, patrão e criada, para Portugal. À beira da estrada, entre Aljezur e Santa Comba Dão, a vivenda do casal impressiona. Tem tijolo, tem tinta, tem telhado, tem casota de cão e tem cão. E no relvado, cortado a tesoura de letras de sebe, pode ler-se:
– Vivenda Lopes.
Graças a Deus.




Caramulo, 19 de Setembro de 2006

A Casa É das Mulheres - história 5 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Nunca mais lá voltei. Nunca mais lá voltarei. Não podemos regressar a um sítio onde fomos felizes e depois deixámos de ser. E eu fui feliz naquela casa de madeira. No lar, ardia a perfumada lenha de oliveira. Cá fora, da névoa fantasmática eriçavam-se copas agudas.

2
Nas tábuas pregadas da parede estavam os alimentos enlatados. Eu alinhava-os como se fossem livros. De quinze em quinze dias, saía para me abastecer de comida, vinho e jornais. Bebia café de máquina na vila. Depois, voltava àquela solidão voluntária. E eu era feliz.

3
Deitava-me muito cedo. Baixava o som do rádio para ouvir o vento da noite, que corria e uivava pelo mundo como um cão transparente. Antes de me deitar, reforçava o lume. O vento e o fogo cantavam para mim. O mel do cansaço cerrava-me os olhos. E sem sonhos eram as minhas noites.

4
Levantava-me antes da primeira luz. Saía para respirar o frio. Fazia algumas flexões, bebia água do poço e fumava meio cigarro sem travar o fumo. Depois, reentrava para fazer café fresco. Fritava toucinho e ovos, abria um frasco de espargos e torrava pão. Ao lume, fervia já a água na panela negra. Acabava de comer, punha um pedaço de carne salgada na panela e levantava a tampa do piano.

5
Tocava hora e meia. Ia compondo frases esparsas, verificando a sinceridade delas. Descia a tampa do piano, sentava-me à mesa, arredava a louça suja e fixava na pauta a música possível de cada dia.

6
Assim era tudo, assim era a minha vida. Até que as mulheres apareceram. Eram três. Eram transparentes. Vi-as ao pé do poço. Levitavam. Não olhavam umas para as outras. Não olhavam nada. Eram cegas e brancas. Tinham cabelo até ao chão. Rodaram as três cabeças e fixaram-me nos olhos. Nos meus olhos.

7
Fugi. Não voltei a casa. Corri pela floresta. Levava uma pressa cardíaca de coelho. Na vila, pedi aguardente. Não fui capaz de contar nada a ninguém. Conto agora.

8
Vivo na cidade. Aqui, os fantasmas são feitos de gente viva. Vivem no ar alto dos prédios. Entristecem dentro de carros eléctricos. Mas não me olham nos olhos.

9
Vivo mal. Durmo dentro de cartões frigoríficos. Gosto das colunas gregas do Teatro Nacional. Ouço música interior. Nunca mais toquei piano. Nunca mais tocarei.

10
Canto para mim mesmo. Resta-me isso. Às vezes, vou ver o rio. Há barcos estrangeiros. Fiquei a dever a aguardente no café da vila. Mas não voltarei. Elas tratam da casa.



Caramulo, tarde de 13 de Setembro de 2006

07/10/2006

O Escuro das Províncias

Há homens que adentram o escuro das províncias.
Apostam nos canaviais, nas raparigas percorridas.
De comboio cavalgam moradas sem mãe dentro.
É o tempo silvestre, o caminho do cancro.

Nem tudo assim apenas. Certas vezes,
conhecem os homens prumos de prédios.
Depois cafés, resolvem seus tédios
com livros d’império ingleses, chineses.

Só não querem morrer por pura lotaria.
São homens que eu sei. Só querem alegria.





Caramulo, noite de 6 de Outubro de 2006

Moedinha por Favor

Delicada face nunca
é montra do teu olhar
olhas e vês a espelunca
que pudeste organizar.

Que pudeste ter por conta
ano sim e ano não
tanto desce tanto monta
‘sorganiza-te meu irmão.

Vê se dás de lad’o flanco
fraco não: ninguém diss’isso
pé é pé rest’é humano
porco é porco ópois chouriço.

Delicada face nunca
tenhas outra por favor
a moeda mais adunca
de perfil mantém valor.





Caramulo, noite de 6 de Outubro de 2006

Soneto Referente

Muitas merendas de chá e bolinhos foram já dadas.
A sociedade prescreveu seus dela mesmos onanismos.
Penso que da ciência provas há ‘inda não provadas.
Nem tudo percebe o organismo dos organismos.

Vivo com um eu hidroeléctrico que me custa.
Barragens faço a mim mesmo mas entretanto
não sei quão d’água nova jovem velha vetusta
hei-de deixar jorrar em verso puro ou nem tanto.

Sei doutros homens mulheres outras, sei de mais vida.
Eu até sei quantos são doze a dez por cem doze por mil.
Vidamanhã há-de valer mais que a vivida,
Não fora infância balão d’ensaio do senil.

Eu aqui deixo minha cruzada sem Deus além.
Eu sou filho de meu Pai e filho de minha Mãe.






Caramulo, noite de 6 de Outubro de 2006

Cegamente Apenas Algumas Coisas

Cegamente apenas algumas coisas
realizes na tua vida – a única.
No que sobra, usa lucidez.
O mundo é bonito e tem de
ser visto por ti.
Tu agora vais contar às pessoas
este mesmo anoitecer, queres?

– Quero.

Anoitece: quero dizer: cega o mundo.
Manhã muito cedo (eu recordo),
o mercado recebia (vivia de) velhas damas.
Tinham feito do céu um
armazém de cartão.
Nem o sol rompia.
Só a fé me dizia
que era dia.
Massa de plumbeágua.
Árvores lavajadas de morrinha.
Paredes de nariz picotadas de limão.
O meu corpo, de casaco negro,
corvoava no cartão terreno.
E viver era ameno.
De todo? Não.
A escassa vida sobrava-me de língua
– e isso me vale.
Depois, numa barraca sujeita à pressão
das eras e das heras,
comi um pão.
Um homem entrou antro adentro.
Trazia um idioma de trabalho
feito de manchas e sobras:
riscos de caligráfico cimento
na roupa, as mãos rebentadas
como minas ou esteiros;
e um apetite por peixe frito
que a patroa satisfez com
grão ensalsado, metades longitudinais
de batata e um ovo cozido.
O homem comeu, bebeu
uma garrafa negra como
a noite
que se pôs
na minha vida.
Eu vi tudo.
Então (mas eu tinha um livro
de 1920 para acabar de ler),
o sol engendrou o meio-dia,
a uma, as duas.
Uma pancada de água
fervilhou as parreiras, as latadas,
(as eras, as heras),
a pobre agricultura artesanal
que vive de ferros mágicos
no coração dos pessegueiros.
Eu cegamente quase nada,
excepto talvez a dor humana,
impressão minha, não talvez
de mais alguém.
Ainda assim, pergunto:

– De mais alguém?

Oh, mas é que festejam,
alhures, outras disposições;
e outros santos.
Faço sempre assim,
os dias todos.
Só os versos mudam.





Caramulo, anoitecer de 6 de Outubro de 2006

Armazém

A minha poesia é um armazém de miudezas.
Sempre perdi, felizmente, o conjunto
e a conjuntura.
Durmo como existo: obscuramente.
E vivo de iluminuras.
Ainda agora, ainda agora: um homem
de pele tão branca, que
à transparência surgia a administração
dos órgãos.
Pediu um copo de café-com-leite,
um bolo de passas.
Disse à senhora:
– Tenho de ir a um funeral às quatro.
Usa um boné castanho de bombazina,
um pulôver de fibra reles.
Calças de fazenda partidas como
papel.
O meu papel.





Caramulo, tarde de 6 de Outubro de 2006

Rapariga na Carruagem-Bar

Rapariga de braços roliços e morenos na carruagem-bar.
Decote subido à força de soutien-arame.
Fenda funda, mamária.
Elásticos pretos sitiando os ombros.
Ar aquecido.
Tocável, ao colo, como um alaúde:
cordas de arame-soutien.
Fino fio de ouro ao pescoço:
dois tesouros num só volume.
Todos os homens a sentem.
É uma flor térmica.
Ela sente-se apreciada, aquecendo.
Gosta.
É tão jovem,
que ainda existe.






Viagem Caramulo-Pombal-Louriçal-Caramulo, tarde de 4 de Outubro de 2006


Tango Belga - história 13 do Anoitecer ao Tom Dela

1
O amor de Adélia por Filipe acabou de morrer às onze e um quarto da manhã de uma terça-feira de outono. Ela estava a trabalhar no escritório. Havia uma telefonia a um canto. Do aparelho, saía um tango assassino. Foi o tango quem acabou de anavalhar o já moribundo amor de Adélia por Filipe.

2
Adélia olhou pela vidraça do escritório. Lá em baixo, o parque de estacionamento da fábrica consubstanciava, em marcas e modelos, as diferenças entre pobres, remediados e ricos. O carro de Filipe também lá estava. Era um dos remediados. Adélia tinha vindo nele, como sempre. Mas já nele não voltaria a casa. E em casa dela não voltaria a entrar Filipe.

3
Filipe era casado com uma professora baixinha e longínqua. Passava trimestres sem ela. Um dia, a professora telefonou e disse a Filipe que aquela vida deles não era vida. E que estava a pensar efectivar-se o mais longe possível do passado comum. Filipe disse “sim, senhora” e foi beber copos para o mesmo bar onde Adélia comia, todas as noites, uma tosta mista.

4
O engenheiro mecânico Filipe e a secretária Adélia começaram a sair juntos. Depois, começaram a entrar juntos. Cinema, bar, fábrica, casa – começaram a partilhar tudo. Ele era um amante caloroso. Ela aceitava tudo. Adélia não se importava com nada. Quando ele lhe perguntava se ela o amava mesmo, ela respondia:
– Sim, senhor.

5
Era, portanto, um amor. E o amor dela por ele começou a morrer logo da primeira vez que ele, mais por ternura que por inquérito, lhe perguntou se ela o amava de facto. Ela respondeu “sim, senhor” mas ficou a pensar para lá da resposta. E pensar é, para o amor, tão assassino como uma navalha de tango.

6
Uma noite, na cama, ele chorou depois do amor. Filipe tinha-se apercebido de que aquilo, tudo aquilo, se transformara numa ginástica convulsa, uma espécie de nada multiplicado por metade de dois. Ver um engenheiro mecânico chorando não é grande espectáculo. E Adélia disse:
– Deixa-te disso, vá.

7
No verão, foram à praia duas ou três vezes. Antes, iam à praça comprar fruta e frango assado. Nadavam na água fria. O corpo de Adélia resplandecia como uma boca vertical. Filipe fingia não ver, mas a verdade é que morria por ela. Não morreu.

8
O verão passou, veio o outono com suas terças-feiras. Adélia foi promovida a chefe de escritório. O patrão veio ter com ela e falou-lhe de uma viagem de uma semana a Bruxelas. Adélia nem quis ter tempo para pensar. Respondeu:
– Sim, senhor.

9
Filipe voltou a frequentar o bar dos solteiros anoitecidos. Viveu eternidades de uma noite. Passou-se um ano até que se fez hoje. Filipe ainda não sabe, mas esta noite a professora vai telefonar-lhe para que ele pense na hipótese da reconstrução do casamento. E Filipe há-de responder que vai pensar.

10
Filipe, que aprendeu alguma coisa com esta história, não vai pensar nada. Ele sabe que pensar nunca ressuscita aquilo que matou. É por isso que ele está para trocar de fábrica, de carro e de bar nocturno. Trocar de vida é que não – porque a vida não é coisa que tenha troco, embora não valha um tango.




Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006

06/10/2006

Lar Belofim - história 15 do Anoitecer ao Tom Dela

1
É muito mais fácil estar vivo do que ser infeliz. Ah sim, eu acho que sim. A sério que acho que sim. Ainda ontem tive mais uma prova. Apareceu aqui na vila uma carrinha do ministério da Saúde. Era para fazer consultas de borla. Consultas ao sangue, ao coração, aos olhos e à cera dos ouvidos. Apareceram uma data de velhos à porta de lado da carrinha. Pareciam-me felizes, aqueles homens e aquelas mulheres. Devia ser por estarem vivos.

2
Eu não. Quer dizer, estou vivo, mas o meu trabalho não me permite aproveitar coisas boas como esta carrinha com um médico de borla. Ninguém se interessa muito pelo meu trabalho, mas como hoje me deixaram falar na rádio, aproveito e falo. Ah pois sim, eu acho que sim!

3
O meu trabalho é pintar de azul o que é verde, de castanho o que é branco e de verde o que é castanho. De modo que tenho trabalho para sempre. Só não tenho tempo para ser infeliz. Nem para o oftalmologista itinerante.

4
Gosto do meu trabalho. Eu quase que ia dizer – gosto da minha vida. Mas julgo que não é preciso exagerar. Eu nunca exagero: se uma coisa é verde, torno-a azul. Só azul. O azul é quanto chega. Eu acho que sim, que chega.

5
Uma das mulheres teimou que o café fazia mal. Começou a dar chá. Só dava chá. Alguns diziam “café”. E ela dizia “está bem” e botava-lhes chá. Ainda não a despediram do Lar. Deve ser sobrinha da doutora. Eu não sei. Eu não me meto nessas coisas. O chá é castanho. O leite é branco.

6
Também faço outras coisas. Não é bem “fazer”, mas não tenho as palavras todas, por isso escrevo. A outra coisa que, por assim dizer, faço, é recordar bocados de coisas. O bocado do homem que descobriu um bocado de Creta. O bocado de uma festa de aniversário de aniversário de casamento, já nenhum dos dois noivos velhos mora aqui connosco.

7
Quando chove, não nos deixam sair. Não nos proíbem, fecham só tudo o que seja abertura. Eu não me importo. A chuva já não me faz recordar nada. Por isso, torno azul o que era verde, castanho o que era branco, verde o que era castanho. Tenho lápis que dão até ao fim da vida.

8
As mulheres põem água no branco. A gente tira os dentes e morde o pão com as mucosas. Está sempre a rádio a tocar (logo vou ouvir-me nela), algures. Há música por todo o lado. Depois, uma vez por mês, temos de fingir que somos crianças. É quando vem a família. A família é verde.

9
A semana passada, era bom ir no autocarro ver ranchos. Agora já não é bom. Já não gosto. Não me importo que assem castanhas no Outono e que, logo a seguir, estraguem algodão (que é branco) e musgo (que é verde) por causa do presépio. A música dos ranchos corta como vidro, às vezes.

10
O senhor está bem? A senhora está bem? Estamos-sim-senhores-muito-obrigados. E sentem-se felizes aqui? Olhe, menina, também não é preciso exagerar. Estamos vivos, não estamos? O que é que é preciso mais, diga-me lá? Só se for chá.





Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006


O Náufrago da Chuva - história 14 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Era uma vez um país onde a chuva era tão dada a eternidades, que as pessoas se deitavam cedo para sonhar com o Sol. Depois, é claro que aquilo passava. Naquele país, as coisas passavam para que tudo fosse para sempre. Foi nesse país que nasci, é nesse país que vivo.

2
Chamo-me Ismael. Sim, Ismael como o náufrago do romance Moby Dick. Não sou marinheiro. Gostaria de ter sido marinheiro. Sou cobrador de seguros. Chamo-me Ismael e sou cobrador de seguros. A minha ex-mulher é enfermeira. Trocou-me por um médico. Não posso criticá-la.

3
Se eu fosse marinheiro, não haveria de cobrar nada a ninguém. Nem dinheiro, nem explicações, nem remorsos, nem recordações. Equilibrava-me na firme inconstância da ondulação. Dava a cara a curtir ao sal e ao vento. E não sonhava com o Sol porque aí estava ele, na pele do peixe que esfaqueia de repente a tona d’água.

4
Tenho o meu tempo. Entre cobranças, vou à Brasileira, encomendo um copo de café-com-leite e um pãozinho-de-manteiga e leio um pouco. Gosto de ler relatos de crimes famosos. Aqueles de que gosto mais são os homicídios do século XIX na Inglaterra. Até já percebo um pouco do assunto, valha-me Deus.

5
Nunca li o romance Moby Dick. Vi o filme e gostei. Pode ser que ainda leia o Moby Dick. Tenho tempo para ler. Gosto mais dos crimes ingleses porque lá também chove muito. E faz nevoeiro. Quando bebo o meu café-com-leite e leio, é como se tudo fosse mesmo para sempre. Dá uma espécie de segurança. De segurança e de impunidade.

6
Mais ou menos uns dois anos depois de Emília me ter deixado, deixei eu de me deitar cedo para sonhar com o Sol. Até posso dizer que, em determinado sentido, deixei de ser daqui, deste país. Mudei de chuva. Tornei-me inglês, por assim dizer. Na montra da livraria, perto da Brasileira, estava um volume de relatos de crimes ingleses do século XIX.

7
Matriculei-me numa escola nocturna de línguas e apliquei-me no inglês. Já mandei vir livros de Inglaterra. Tenho um bom dicionário. Lá fora chove, depois passa e depois volta a chover. Tenho um caderno de mercearia no qual aponto os nomes e as datas. Ao contrário da vida, alguns crimes têm solução.
8
Ninguém me pergunta, mas se me perguntassem, eu só teria esta resposta:
– Nos barcos também há tempo para ler.
Fazia o meu quarto de serviço, descia ao beliche e lia as glórias e os desaires da Scotland Yard. Amolecia no chá os duros biscoitos salgados, comia a minha lata de carne e bebia um quartilho de rum. E não pensava em Emília nem lhe escrevia o nome no caderno de mercearia.

9
Pus dinheiro de lado para uma viagem a Londres. A ideia era fazer o circuito de Whitechapel, por onde Jack o Estripador exerceu a sua cutelaria inexplicável e inexplicada. Mas não, nunca irei a Londres. É melhor imaginar do que ver. É melhor imaginar do que viver.

10
Chamo-me Ismael e nunca li o romance Moby Dick. A história é contada na primeira pessoa por um marinheiro, o único sobrevivente do naufrágio que resultou da obsessão do capitão pela baleia branca. Chamo-me Ismael e sou cobrador de seguros. Não sou nenhum náufrago.





Caramulo, tarde de 3 de Outubro de 2006

Canzoada Assaltante