Fonte Nova e Pombal,
manhã de 4 e tarde de 11 de Março de 2009
9h14
Não sei o que fiz da minha vida.
Sei o que não fiz da minha vida.
9h18
Está decidido: hoje vou cortar o cabelo.
Mas faço a barba na pensão.
Não suporto que mão alheia me traga lâmina à garganta: só tenho esta, não me cortarão o passado nela.
Nenhuma decisão corta o passado.
Uma lâmina, sim.
Não sei o que fiz do meu futuro, excepto que hoje vou cortar o cabelo.
Mas faço a barba na pensão.
9h27
Um gajo matar-se, não.
Não faz sentido.
A vida há-de encarregar-se de se tirar (d)a vida.
Está decidido: quando o subsídio pingar, arranco estes dois dentes, o de cima e o de baixo.
Tem de ser um dentista barato, mesmo que doa.
Há coisas gratuitas ainda, já não há coisas graciosas.
9h32
Às vezes penso (penso agora) que a minha vida poderia ter dado um barbeiro – ou um dentista.
Não deu.
9h48
Lembrei-me do brasileiro Badaró.
Não sei porquê.
Estava na prisão quando ele morreu.
Talvez me tenha lembrado do Badaró para me desculpar da lembrança da prisão.
Badaró poderia ter dado um bom Beckett.
Um bom Pinter, um razoável Sófocles, um Miller jeitoso, um Tennessee aceitável, até um Osborne bem esgalhado, um Ionesco porreiro.
Mas Badaró nunca deu um bom Badaró.
Isto acontece comigo, também.
9h51
Acho que hoje está a ser mais pensativo que de costume depois da prisão.
Na prisão, era como hoje: pensar tudo a toda a hora e sobre toda a folha.
Mas lá não escrevia, nunca escrevi.
Não sei por que nem para que o faço agora.
Penso: a infância terá mesmo de ser?
Ou assim: a infância terá mesmo de ser o pretexto de tanta veterania?
(Depois, agora, esqueço: uma formiga debate-se de costas no tampo da mesa da pastelaria.
Não a esmago, a vida dela há-de encarregar-se disso e dela.)
10h05
Carpintaria é um ofício bonito.
Aprendi na cana.
Não posso começar uma oficina, não tenho dinheiro para tanto.
Não há emprego cá fora.
Faz-me uma cara oficiosamente triste (mas é tristemente oficial) a menina da Reintegração.
O psicólogo faz uma cara igual à dela.
Às vezes, aparece um biscate.
Faço, pagam-me umas moedas, dá para tabaco e para uma sopa fora da pensão.
A minha especialidade é fazer gavetas à medida, tiro as partidas e meto as novas.
Faz-me jeito: aplico isso à minha vida de um dia por dia, agora que escrevo fora da gaveta.
10h08
Não hei-de morrer com 47 anos, hei-de?
10h12
Lembro-me de pensar assim na prisão: “Um dia isto arde tudo.”
Mas não.
Pelo contrário: hoje chove em toda a parte.
E hoje é um dia.
10h24
De cabelo menos comprido, sem barba e menos dois dentes – serei o mesmo homem?
Sim, mas com menos corpo.
12h08
Almoço na pensão.
Sopa de repolho, azeitonas, um papo-seco, quatro salsichas das pequenas com batata frita e ovo estrelado.
Um café de cafeteira em chávena média e um cálice pequeno de aguardente.
Não servem jantares nem pequeno-almoço.
14h14
Um ar de não sei quem: vi-me atravessado de camisas, o rosto cortado no reflexo da montra.
Preciso de não pensar tanto – ou de não deixar o rosto pensar.
15h09
Uma semana inteira mais quatro dias para vir o subsídio.
Dá para a pensão e para uma semana de cigarros.
16h00
Ciganada por todo o lado, por tudo quanto é sítio e mundo (imundo).
Metiam nojo lá dentro, metem nojo cá fora.
15h18
Coisas que não fiz na minha vida: pensar mais cedo, perceber mais cedo, não deixar que se tornasse tarde.
Coisa que fiz: mal, matando um gajo que me fez mal.
16h48
Pré-noite pior que a noite.
À noite, durmo, o comprimido da Reintegração ajuda, não sei o que faria de tanta noite e de tanta luz preta sem ele.
Mas a pré-noite é pior.
Quase nunca um convite para uma aguardente, dois dedos de conversa sobre bola.
Muita gente – e nenhuma gente, cá fora, quando escurece, quando parece que nunca mais há ser dia, como lá dentro.
19h35
A noite usa as casas para emitir sinais.
São sinais eléctricos.
Não são para mim, os sinais.
A luz não se me dirige.
Talvez eu saiba porquê, não por não saber o que fiz da minha vida, mas por saber o que não fiz dela.
20h48
Convidaram-me para um petisco de iscas na casa-de-pasto em frente à retrosaria do grego.
Aceitei.
No fim, fumei do tabaco deles.
Um chama-se Gregório e é representante de máquinas agrícolas, não é daqui mas é como se fosse, bate a zona há quinze anos ou mais.
O outro chama-se David e é um bocado manhoso, já andou na pintura da construção civil e a recolher fichas numa pista de carros-de-choque de feira em feira.
Também já esteve preso, mas tempo menor, coisa de nada, um ano e picos.
Está junto com uma Marília que faz limpezas.
5h13
Acordo sem retorno a esta hora.
Não sei porquê nem para quê.
1 comentário:
tudo tudo lindo. e depois pérolinhas agora todas minhas "o passado nela". felicidades puras. que hei-de eu fazer. não pode um gajo matar-se. aos 43 anos. espero um subsídio. este chegará. o meu "futuro nela".
Enviar um comentário