01/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - V

© DA.


299 - V


Quarta-feira,
28 de Abril de 2021

    Escarpas oblíquas como vagas de um oceano petrificado pela indiferença de Deus, sopés arborizados sem acção humana, também os rios se mostram do instinto fatal do salmão, também os rios procuram água em que morrer, o sal caustica-lhes a derradeira inocência, conto isto personific’animando os elementos para que a poesia oculte a minha nesciência, e digo nesciência em vez de ignorância como digo agnóstico em vez de ateu, tenho enfim alguns estudos, fiz afinal algumas leituras, planos de aérea perspectiva abrem ao olhar a ingente & absurda formosura do mundo, num momento é diáfana a transparência que funde o olhar ao olhado, num instante tudo parece mercurial ou plúmbeo ou denso de mais para suportar qualquer atenção, muito me aconteceu já tanto deste instante quanto daquele momento, amo a simetria por ser uma ilusão amável de ordem lógica & de co-pertença, por assim dizer, a simetria é a poesia possível contra a entropia, essa furiosa alegria da desordem mais imprevisível, como o humano criando deuses sempre a torto / nunca a direito, infalível é a nossa finitude, falível a nossa atitude, como quando morre alguém cujo número telefónico consta do nosso aparelho, a altura chega em que deparamos com esse número e só nos resta obliterá-lo, se cedermos à tentação de o marcarmos, nunca é do Céu ou do Purgatório ou do Inverno que respondem, o certo é tão-só a operadora ter perdido o cliente, outra imagem é a das casas derruídas de que se vê o interior que permanece de pé, pelas paredes o diagrama das prateleiras desaparecidas, o vão dos pórticos, alguma parede em que hajam sobrevivido as marcas centimétricas que mensuravam quanto & quão depressa as crianças crescem, mas quais crianças agora, quais crianças tão depressa peças da engrenagem produto-contributiva, quais contribuintes tão depressa mumificados em depósitos de uma idade a que o eufemismo chama terceira embora se saiba tão bem não haver quarta, tirante talvez alguns espectros centenários que aparecem nas televisões pindérico-sentimentais a rir-se sem dentes e a dizer que-sim-que-sim como aqueles cãezinhos-de-pelúcia que antigamente viajavam no rebordo do vidro traseiro dos carros sobre alcatifa hirsuto-sintética, usares chapéu não faz de ti indiana-jones algum, “chapéus-há-muitos”, como dizia o bom Vasco Santana, extinto aos 14 de Junho de 1958 com meros sessenta anos, era afinal um nado do século XIX, tinha afinal dois anos já quando o Eça morreu, dez quando mataram o Rei, vinte quando mataram o Sidónio, nem Cristo nem D. Sebastião tinham regressado, nem Thor ou Odin ou Zeus ou Adon ou Manitu ou outro qualquer desses cromos para colar os quais cada um fantasia a caderneta mais propícia, mas não era de nada disto que Vos queria falar hoje, sim

    Hoje-Quinta-Feira-12-de-Junho-de-1975,
    hora de almoço, Bersânio almoça em casa, já pôs de lado o jornal do dia, enquanto come a sopa vai relendo pela mil’en’ésima vez o seu amado David Mourão-Ferreira, amparado à fruteira o volume Matura Idade, fresco ainda pois que de 1973, suspensa a meio-voo fica a colher quando

    “E POR VEZES
    
    E por vezes as noites duram meses
    E por vezes os meses oceanos
    E por vezes os braços que apertamos
    nunca são os mesmos E por vezes

    encontramos de nós em poucos meses
    o que a noite nos fez em muitos anos
    E por vezes fingimos que lembramos
    E por vezes lembramos o que por vezes

    ao tomarmos o gosto aos oceanos
    só o sarro das noites não dos meses
    lá no fundo dos copos encontramos

    E por vezes sorrimos ou choramos
    E por vezes ah por vezes
    num segundo se evolam tantos anos”

e o bom Bersânio comove-se com a maestria do distinto DM-F, artista de supina voz-comunicante que tão bem escreve & tão bem se apresenta na televisão-única, e enquanto B. se comove & acaba a sopa & ataca o bacalhau, à mesm’exacta hora toma café (bica-à-italiana, isto é, curta) no Café Internacional, ali à Estação Nova, um moço empregado das Fábricas Triunfo (Bolachas-Massas-Rações), José, 26 anos, autodidacta com formação liceal, também José aprecia poesia portuguesa, acontecendo entrar no Internacional o célebre Taxeira, ardina & cauteleiro & tudo, José faz-lhe sinal, compra-lhe o jornal já treslido por Luciana & recortado por Bersânio já, custa 4$00, o jovem dá ao Taxeira uma moeda de cinco e diz-lhe que fique com os dez tostões da demasia, ao que o magano tão célebre em toda-a-Coimbra rouqueja “óbrigadòdôtôr!”, inconfundível voz picotada a morse tabágico-bagaceiro, José desfaz tempo para repegar ao serviço, folheia o periódico, lê na diagonal as colunas
    (PORTO) Encontro de esperantistas
enquanto Bersânio/David
    E por vezes as noites duram meses
e José
    (ÍLHAVO) Cinco feridos no despiste de um automóvel
e B/D
    o que a noite nos fez em muitos anos

    e José será pai de um menino de hoje a vinte dias, que sua legítima esposa (adequadamente Maria) à luz dará a 2/7 do corrente ’75
    mas a isto retornaremos eu & Vós em uma das entradas de Maio próximo, digo, do Maio do Parnada Idemuno, embora no 75/XX, etc. enfim.



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