29/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 413 a 416

© Jerry Uelsmann


413

Sexta-feira,
28 de Maio de 2021

Dois dias menos fáceis – mas lá vão, não voltam.
A luz de hoje é a verdade mais recorrente de quanto é & há.
Frequento as horas acordadas em aparato de solidão decente.
Muita, muitíssima gente faz o mesmo – e sem versos.
Vai de cada indivíduo o ir-levando-a-vida.
Alguma coisa, pessoal embora, pode ser transmissível.
O resto, o resto diz-se para dentro, sem êxtase ou cegueira.
A pobreza material atrapalha, mas ainda não vence.
Trabalho no sentido da livração, que é de livro & de livre.
E é só um enredo-a-sós: como muitos, muitíssimos são.

414

Desarranjos & desacatos, só dos meus para comigo.
A toda a outra humanidade, santa-paz-do-senhor.
Tenho algum tempo para deixar feita alguma coisa.
Da importância de tal coisa, descreio sem hipocrisia.

S.D. telefonou-me ontem, actualizámo-nos novas quotidianas.
Parece que no andar de baixo do dela uma brasileira grita orações.
Grita orações aos deuses-da-chuva & recebe homens concubinantes.
Por coisas destas se vê quanto são errados o império & a colonização.

S.D. não está portanto na santa-paz-do-senhor,
não o permite a brasileira do andar de baixo.
Não é isto em Coimbra mas num lugarejo mais a sul.
Tenho pena do desassossego de S.D., que bem melhor merece.

Eu tenho-me safado mais ou menos bem de impertinências.
O que mais luta me tem dado, na verdade, é o saber desprezar.
Não é arte assim tão fácil como há muito quem julgue.
Não é: ide por mim neste aspecto, que sei do que falo.

Mais algum tempo, mais algo feito – depende da saúde.
Refiro-me ao todo deste vocábulo: corpórea & mental.
Com os anos, rarefaz-se a possibilidade de entendimento alheio.
A pessoa adere à sua mesma insulação: & privadamente brinca.

Mais do que uma vez reagi com brutalidade ao que me pareceu acinte.
Graças-a-deus, nem sempre tive razão: mas valeu pela retórica.
Graças-ao-diabo, rarearam-se-me os interlocutores.
Não me vereis queixinhando-me, pachorra não abunda.

Salvou-me & resgata-me muito a bonomia da infância que vivi.
Sempre que, agora anoso, a revivo, é comigo a tal santa-paz-do-senhor.
A galeria de rapazes da minha criação, aqui a tenho, à mão da palavra.
Foi um lapso edénico, viver respondia com simplicidade a qualquer pergunta.

E as fábricas daquela zona estão em laboração? Não.
Destruíram-nas, é inimputável a ganância imobiliária.
Dispersou-se a comunidade, desenrascou-se quem pôde.
Os primeiros óbitos da minha geração datam mormente de então.

É fácil perceber que algumas coisas me amargam mais do que é são.
Morrerem-me irmãos (e dois já conto assim) não me ampara a filosofia.
Para a gente-prática, isto é normal, insondáveis-são-os-desígnios-do-senhor.
Eu, à gente-prática, estimo bem que a amargura a visite mais de três dias.

Por aqui se lê & vê que também minto: cf. os dois primeiros versos deste número.
É apenas humano, também me acontece ser reles – mas malévolo, não.
Conheço a malevolência: mas a minha é por reacção; por acção, não.
Assim é. Aqui, não minto. O sozinhismo não é de despicienda consequência.

Procedo com irregular persistência a balancetes do vivido.
Há parcelas sombrias – como a de meus dois mais recentes dias.
Nem um Winston Churchill foi imune a deprimentes nuvens.
Ninguém o é: mas os mais minerais vão-se mais bem safando.

É outro todavia o meu almirantado: de Língua Portuguesa se navega aqui.
Num verso, os rapazes da minha rua; noutro, dois irmãos mortos.
Aceito que isto seja pouco partilhável: mas eis-me em-expressão.
A cada um, seu desastre em seu estreito-de-dardanelos.

Tudo isto tem, por brincadeira, a seriedade que tem.
É sábado amanhã, desconheço que fingida repetição será o dia.
Meia-dúzia de objectos servem a possibilidade instante.
Posso viajar – desde que daqui não saia, não por ora.

Certa bruma da manhã, na Figueira da Foz, lá em outro século.
Perfeição do pequeno-comércio, autoridade do mar, esperança activa.
Onde estão esse mar, o Café do senhor João, esses comensais do Tempo?
Sim, não minto que isso presida a muita perspectiva minha.

Naquele canto desta casa, tenho o Garrett doutrinário.
Admirável escriba, extemporâneo de tão bom, muito me vale.
É companhia mais segura do que muita outra que experimentei.
Mais segura, também, do que a companhia mesma que fiz a outra gente.

Funciona a morte como terraplenagem: nem dúvida tenhamos, nem pressa usemos.
E no entanto só (alguma da) alheia me confrange & escurece.
A própria? Há-de ser adequadamente irrelevante:
mais irrelevante do que pegar-na-lancheira-e-levar-o-almoço-ao-pai.

Cegarregas & açucenas sonorizam & adoçam a serenidade sentida.
Num fósforo, há tragédia na vizinhança: morre o vizinho do NSU.
Depois, C.M. mata à facada P.F., inaudita desgraça.
Matam-nos a infância, tornam-nos consumidores de más-novas.

Os anos nem tudo levam: algo trazem.
A pacificação sexual é um exemplo forte.
Acabou-se-me a fantasmagoria ginástica.
São mais simples mistérios ora as mulheres.

Não quero com isto dizer que deixaram de ser mágicas.
Não. Elas não deixaram de ser prestidigitadoras.
O que se passa – é que já conheço os truques.
Nenhuma lágrima genital por umas cuecas compradas nos chineses.

Vivo uma contemporaneidade cujo espelho me não é aprazível.
Bocado é o que se leva à boca.
Ele há muita coisa horrível.
Horrível, imarcescível & taralhouca.

Aqui onde ’inda ando, o vento é assíduo.
Gosto de ouvi-lo clamando seu contínuo verso.
Tive uma mulher que odiava o meu amor ao vento.
Aos ares a mandei, a outros me mandou ela.

Seja-nos a cada um(a) permitido algum orgulho.
Orgulho no sentido de brio, não no de vaidade.
Afinal, alguma coisa boa alguma vez fizemos.
Eu ajudei a fazer duas Filhas – mas não as criei.

Foi por dentro que aprendi a não V. cansar com o que lêdes.
Artificiosa naturalidade domino, que em linhas volvo.
De quando em vez, meto picos de interesse:
quando me referir às próprias Filhas, interessa-Vos sempre.

Nada disto me leva a / nem tira de tribunal.
Os santos-ofícios persistem na tal gente-prática.
Dói-te-Vos-me mais se são de teu-Vosso-meu sangue:
mas também isso vai de autoclismo repuxado.

Em uma manhã piorzita de Outubro passado,
eu tinha, por junto, oito cigarros na cigarreira.
Na Fernão de Magalhães, um desprovido pediu-me um.
Dei-lhe quatro, digo eu que mear a pobreza dá em dobro riqueza.

Em relação à estrofe anterior, devo ler lido mal o Adam Smith.
Também não seria desassisado deixar de fumar, talvez em morrendo.
A política-nacional-de-saúde gosta de fumadores:
são/somos os mais fiéis pagantes de impostos.

Sou por enquanto do escalão de andarilhos-autónomos.
Vou pelas minhas pernas ainda, ainda me não locomovem a rodas.
Este é ainda o meu livro, o tal de livração (cf. 413).
Vosso também aliás, assim tal o querendo Vós.

E se me/nos aparecesse a tal pessoa estrangeira (cf. 405)?
Eu seguiria (de)dando-lhe Cesário Verde – amailo Almeida Garrett.
E se ela me/nos estranhasse: – E o Correio da Manhã jornal & TV?
Só poderia: – O-senhor-desculpe-qualquer-coisinha…

Dou pouca soltura aos papéis, são continentes eles da minha vida escrita.
Ficarão eles quando me volver eu em proscrito.
Ficarão? Numa caixa de papelão? Mais certo é sim que não.
Alguma coisa porém deixarei feita, perfeita não.

Em horas menos sensatas, dei livramento a pulsões inferiores.
Tenho conhecido gente tão medíocre quanto eu sou abebiamente.
Toda ela enfim se dissipa no nevoeiro, esse que não dá dons-sebastiões.
Mas antes isso do que casar-me rico como o Fialho de Almeida.

Esta vereda de bosque é pessoal como a espiral-digital.
Este caminho de areia bordado a camarinhas, idem.
Há alternativas de vida, muitas – mas nenhuma à morte.
Pouco dobrarão os sinos – o sacristão tem mais que fazer.

Ou então: faz no próximo Outubro quatro décadas redondas,
li na Beira Alta o Trabalho Poético de Carlos de Oliveira.
Folheei também, procrastinando-o porém, Somerset Maugham.
Era a minha era de iniciação – de que nada rejeito ainda.

Passados tempos, a morte tocou-nos em rifa.
Uns reagiram por ali, outros por acoli.
Nunca mais a suposta harmonia li’ou os elementos.
Assim estamos – e para ele seguimos como vamos.

De súbito, tive de interromper esta composição.
Um telefonema de Lisboa reteve-me por longo quarto-de-hora.
Uma voz pediu-me avaliação (escala 1 a 10) de serviços bancários.
Logo a mim, que sou & estou mais teso do que urso-polar morto na tundra.

Sempre foi, enfim, alguém querendo falar comigo.
Correu bem, avaliei produtos, serviços & atendimento como vero cliente.
Pareci o Kafka a tratar de seguros de acidentes laborais.
Ou não: mas mesmo que não, mal nenhum.

Os Ingleses no Porto não são já os discretos colonizadores d’aquando Júlio Diniz.
Os de agora são hordas vândalo-futebo’ólicas sem cabresto.
Joga-se na Invicta a Final da Liga dos Campeões.
Cervejarias portuenses pelos vistos felizes.

E na mais recente colónia britânia, vulgo Algarve,
o carnavalesco corso de retardados de Sua Majestade até brilha.
É como os “jovens” que assediam o Bairro Alto:
a iliteracia-cívica é gritante, mas o País & o Porvir são surdos.

É a alegre acefalia dos erasmus-orgasmus, o alegre euronépias.
E eu aqui a malhar no Garrett doutrinário…
Fanecas amarelas de quinze anos – e já escarépias
+ energúmenos de dezassete com semblante alimário…

Por aqui-Coimbra, a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra
reagiu muito bem à marcha saudade-fascista do Ventura-Chega-Chaga.
Nem tudo está perdido.
Também não muito está ganho.

Este é um Presente sem nostalgia possível.
Salva-se a luz na arquitectura & no arvoredo.
Parece-me, o resto, deveras irremissível.
Mas enfim, nem valentia nem medo.

Desarranjos & desacatos
etc.

415

Penso em figuras que existem (que r-existem) obstinadamente.
Raul Brandão é uma dessas figuras obstinadas.
A sua originalidade parece-me faceta incontestável.
Os livros dele são produto de uma entrega total.
Outra figura, anterior no Tempo, é Almeida Garrett.
É ridículo limitá-lo ao aspecto dandy, taful, superficial.
Foi, pelo contrário, um grande Artista & um grande Português.
Foi Midas no tudo que tocou: Poesia, Teatro, Prosa,
Arqueologia Literário-Popular, Língua-Pátria do País que sublimou.
Tenho sido feliz relendo um & outro.
E um manifesto de felicidade, até por raro, só me fica bem.

416

Ciclistas amadores na ponte velha.
O fotógrafo por ali grassa fazendo bonecos.
Tempo indeciso, há quem receie chuva.
É uma prova popular, que a malta acarinha.
A cena faz em Julho oitenta & dois anos.
Em Setembro, a Europa entra em guerra.
O rio semelha uma veia mercurial.
O mais dele é porém areia, é de curso modesto.
No Inverno, alarga-se & alaga, dá cheias até.
Por mais quatro anos, são solteiros os meus Pais.
Restam as fotografias dessa jornada de sport.
Os ciclistas são mormente operários.
Talvez algum seja professor, não sei.
Sei muito pouco, como de costume.
Oitenta & dois anos, parece brincadeira.
E não é brincadeira alguma, é mortandade.
O fotógrafo fez bons clichés, é talentoso.
Só posso dar imagens em verbo.
Naturalmente, empobreço-Vos o cenário.
Além, a Alta: vão destruí-la em breve.
É um crime patrimonial do nosso fascismozito:
o nosso fascismozito-de-imitação-italiana.
Governa o sarcófago-ambulante de Santa Comba Dão.
Poucas crianças nas fotografias.
Talvez sejam vivas algumas ainda.
Não tenho maneira de sabê-lo.
Vi as imagens, já a noite começara,
Não estava só: o Gato dormia em flanela.
Desliguei a maquineta-de-imagens.
Recolhi-me ao leito sem pressa alguma.
Arrefecera um pouco, mas não de mais.
Certa aspereza gástrica, mas não de mais.
Há sempre que segregar futuro.
E no entanto aqueles ciclistas, aquela manhã festiva.
Rapazes de Coselhas, da Arregaça, dos Olivais, da Portela.
Vão dar a Volta à Conraria, são bravos.
Que lhes sucede depois? Onde? Para quê?
Ainda nem há quatro anos morreu Fernando Pessoa.
Raul Brandão, há cerca de nove.
Esta gente não está a pensar nisso.
É dia de sport, de descontracção sem folia.
Passa o homem dos refrescos, capilé & groselha.
Passa a mulher do bolo-de-Ançã & das queijadas.
É gente que faz pela vida, antes isto que roubar.
Até os abastados gostam do ciclismo amador.
São bravos rapazes, estão no viço da mocidade.
Estes não vão para a guerra que aí vem.
O mostrengo de Santa Comba é manhoso.
Ocorre-me algo gentil, capaz de fazer-me sorrir:
a minha Mãe tem quinze anos; o meu Pai, 22.
Corrijo: a minha Mãe terá quinze em Outubro.
O meu Pai já tem os 22, fê-los em Abril.
Sei que já se namoram; o pai dela é contra, claro.
Faltam trinta anos (talvez 31) para aquele verso do 414:
Certa bruma da manhã, na Figueira da Foz, lá em outro século
(verso primeiro da décima-quarta estrofe).
As coisas vão arranjando maneira de nascer p’ra ser.
E estas têm importância, estas coisas importam.
Atenção: não porque eu as escreva.
O que escrevo não carece de importância.
Estas coisas importam por enformarem uma mundivisão.
Entre cada Ego, cá, &, de lá, o mundo, a ponte urge. E ruge.
Essa ponte é a visão de que formos capazes.
Isto não é nem deixa de ser pragmático.
É tão-só sobreviver deixando os outros viver.
Nada de outro mundo – tudo deste mundo.



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Canzoada Assaltante