23/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 395 a 401

© DA.


395

Sábado,
22 de Maio de 2021

    Morte nenhuma nas últimas 24, mais 523 infecções no mesmo segmento temporal. Sou picado terça que vem, 25, hora marcada: 11h34m, no Pavilhão M.M., Calhabé/Solum. Em Coimbra também, no Calhabé também, amanhã há Final da Taça de Portugal: Sport Lisboa e Benfica – Sporting Clube de Braga. Nunca fui a este Estádio Cidade de Coimbra ver um jogo. Fui algumas vezes ao demolido Municipal. Lá vai.

396

    Pela fresca da noite, no lagar amplo de Virgílio Pantaleão, havia canções & vinho velho, pessoas de fora ajuntavam-se-nos em manso sinédrio, ali mesmo houve primeiros nubentes oaristos que em casamentos floresceram empós. Os cantores tinham privilégio: não menor, o de serem acompanhados à guitarra-portuguesa por Armando Fontes & à guitarra-clássica, dita viola, por Mário de Castro. Serões houve em que à concertina se mostrou o bom Lucídio Mosca & aos ferrinhos o bom Agostinho Viana. Quantos anos arderam de então? Muitos. Demasiados. Há muito se apagou o nosso lagareiro anfitrião, como se apagaram a Celeste senhora dele; os quatro músicos; dos cantores, restam vivos tão-só o efeminado (mas discreto) Eduardinho Prior & o Manuel Claro Branquinho. Os outros, Deus haja que a Si os tenha chamado: o ruivo Anacleto Pá-Pi, o Tomé Assunção, o Mané Pintasilgo (só com um S), o Clemente da Torre. Eu ainda vivo. E a lembrança de todos também, enquanto eu viver. Quando já não, sirva a literatura de & para alguma coisa, que mais se lhe não pede.

397

    Afinal era para hoje e não para amanhã-domingo, digo: o Atlético de Madrid é campeão espanhol da época 2020-21. Foi ganhar 1-2 ao campo do Valladolid (que desceu à Segunda Divisão dos hermanos). Na Alemanha, o grande Lewandowsky, mesmo ao cair do pano contra o Augsburg, facturou o seu 41.º golo no campeonato, mais um do que o também enorme Gerd Müller conseguira no campeonato alemão de 1971-72. Agora, é esperar que o meu Benfica seja feliz, amanhã, na minha Cidade.

398

Ottla Heinke cuidou do irmão Hans-August toda a vida deste.
Foi ela a garantir a liquidação das contas fixas da casa.
Ele muito irregularmente ganhava alguma coisa com as telas.
Depois de morto, a obra dele foi objecto de intensa especulação.
Ottla acabou ficando confortavelmente remunerada.
Pagou a um arquitecto, viu com alegria o jazigo para eles dois.
O irmão esperou por ela quarenta & oito anos.
Ela morreu com 101 feitos, paciente, confiante, a mesma de sempre.
Testamentou a favor dos Fidelíssimos Pobres de Sant’Anna.
A escritura do jazigo é perpétua – por enquanto.

399

Mário, sentado nas folhas de mármore que acedem ao convento.
Noite um pouco mais fria do que esperava quando em casa.
Perto, o aqueduto preside á terrena pastagem enluarada.
Estamos em 1962, Mário deixar-nos-á em vindo 1991.
Nisto, chegam Bernardo, Fialho, Crisóstomo & Vasco.
Vão os cinco ao baile das Formosas, salão privado do Conde.
Dizeis que a República aboliu as nobiliarquias?
Dizeis bem – mas aqui é condado & há conde para ele.

Lá vão os cinco rapazes, trajando do domingo as fatiotas.
A orquestra é de acordeão, rabeca, tuba & jazz-band.
Há ponche, há orchata, há limonada, há vinho-abafado, há palitos la-reine.
Moças com suas mães, cavalheiros possidentes, um cão de louça.
A Condessinha Menina Silvana há-de tocar a sua polca ao seu piano.
É muito prendada – e feia como o sapo enjoado em charco oleoso.
Fora, no pátio alcatifado a gravilha, rutila o plenilúnio.
Dentro, os dois lacaios andorinham bandejas de prata antiga.

Mário casa-se com a Condessinha em 1968.
Bernardo morre na Guiné nesse mesmo ano.
Fialho emigra para o Canadá francófono.
Crisóstomo faz-se professor de liceu em Évora.
Vasco torna-se dono da Pensão Barata, bom negócio.
Os domingos esfumam-se través as arcadas do aqueduto.
Vai-se rachando o mármore conventual.
O cedro das Formosas lá está, sábio & calado. Espera nada.

400

    Tomás Garcia & Gabriel Homem-Cristo, professores do Colégio da Anunciada, costumam vir merendar aqui ao Orlando. Atrai-os a posta de bacalhau frito, que mastigam com broa & enxaguam com vinhaça tinta. São bons comparsas. O Orlando adora tê-los por fregueses. Reúnem-se aqui gentes do variado mundo, pintores das obras, um solicitador, o padeiro do bairro, tarefeiros, tarimbeiros, ociosos & demais tristes. Eu vou ao Orlando há onze anos. Temos um segredo, o Orlando & eu. A garrafa tem o rótulo da marca do armazenista, mas a aguardente nela é caseira, directa do alambique de Rolando, irmão de Orlando. É áspera, ilegal & maravilhosa. Já me deu muitos versos.
    Eu também fui já  professor liceal – mas ninguém o sabe aqui, ninguém mesmo. Nem Orlando, nem Gabriel, nem Tomás, ninguém. Julgo que me supõem filho-família desprecisado de trabalhar para levar o pão, o cigarro & o bagaço à boca. Eu deixo-os supor, mal não lhes faz – nem a mim, que cultivo a mais cordata indiferença por os postos, supostos & pressupostos do vão mundo. Até porque ser tão feliz nem história dá, quando muito algum verso mais-ou-menos.

401

    Silos altíssimos, verticalíssimos, de tez ocre na manhã cinzenta, à beira da ferrovia industrial, emanando o olor pungente das rações. Seres humanos formigando fora-dentro-redor-dentro-fora. Depois, a fiação, a litografia, a estatuária, a fundição, o matadouro, a camionagem, a colina coroada pelo cemitério – e além do cemitério, a creche operária. Todos estes elementos emolduram a criação da pessoa. São referências leais, nunca falham, formam em si uma pátria prática, disponível, identitária, dizível. Antes da industrialização, agricultura dita de subsistência & pesca fluvial. Alguns pedreiros, dois jardineiros, alguns cantoneiros, calafates, valadores, as mulheres invisíveis, os muitos filhos que toda a gente continua a fazer sem ontem nem amanhã. Vem depois a fábrica de caldeiras, o entreposto de refrigerantes, a escola dos cegos, pensais talvez que minto, que colmato com rípios esta prosa, tereis a V.ª razão – mas permiti-me V. que persista ainda um pouco. Faço isto sozinho, não enjeitaria um pouco de paciência, já que companhia não, alheia. Boas alamedas corro depois, é a minha ventura aeróbica, há valas com riqueza de enguias, na estrada que começam a alcatroar, além, dito Porto Santiago, passam já caminhões carregados de pedra, pinho, manilhas, barris, areia que sangra rastos de água ambarina. Tive então uma janela. Era boca-de-cena. A ela assisti à peça dos animais a que chamava meus – um ror de cães, gatos, Pai & Mãe & Irmãos, patos, pombas, lagartixas, caracóis, a Avó vinha de quando em vez, ficava duas noites, o Pai vinha dormir com a rapaziada, a Mãe & a Mãe dela dormiam na cama maior da casa, sempre me pareceu o que deveras era: uma festa de risota, entre nós rapazes o Pai de novo rapaz novo – e por enquanto perpétuo.



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Canzoada Assaltante