24/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 402 a 407

© DA.


402

Domingo,
23 de Maio de 2021

Com pouco se diz muito, às vezes acontece.
Quem ouça, não tanto.
Quem compreenda, menos ainda.
Tragédia nenhuma.
Importância nenhuma.
Alguma coisa feita foi bem feita.
A mal, limpa-a a Natura.
Tenho visto corvos.
Tripulam a restrita imensidão do Tempo.
Não são crucifixos-volantes, são aves.
Em sintonia com os elementos, a tempo.
Lido mal com a desatenção.
Parece-me ser ela a responsável pelo tempo queimado.
Acontece dar-se contacto, mesmo em distracção.
Falo-Vos de estátuas de jardim, pedra sobre relva.
Tenho-as visto, revisto, revistado, revisitado.
Alguma antiga novidade me darão / lhes darei.
Talvez ainda saiamos um pouco.
Mas para isso temos de ter um corpo.
Mas para isso temos de ser um corpo.
Mas para isso temos de ver um corpo.
Mas para isso temos de escrever um corpo.
Mas para isso temos de ler um corpo.
Uma vez por semana é tudo isto que faço.
Refracto em dominó os dias-pedras.
Em lição-texto, os dois sincretismos.
Os dois sincretismos: o filosófico & o infante-sensorial.
Essa encosta florente ao longo da que cirandamos.
Torreões felizmente longínquos sobem a manhã.
Piscam de noite as sinaléticas aéreas.
Tragédia nenhuma.
Comédia nenhuma.
Mas estudar sempre.
Se música, Música então.
Se jardinagem, Éden então.
Por aí, nesse sentido.
Não tenho trinta anos defronte.

403

Macia roupagem de cama envolve o adormecido.
Macia Maria envolta ela também a ele junto.
Em panorama tremula aquoso o ar estremecido.
Quarenta anos um de si outro, é contar muito.

404

Na rua entre os Correios e a Tabacaria Cruzense.
O sol dá na casa azulejada a azul-da-marinha.
Há canteiro a meio da praceta a oriente.
Aí sobe a estátua do victor liberal d’antanho.
Pouco mais aqui passa do que o carteiro.
Lições particulares de piano no número 32.
Churrasqueira para fora nos números 41-43.
Houve aqui Luiz Damasceno sua infância clara.
Tem por aqui morrido muito velho original.
Onde era o grémio, é agência de seguros.
Sobrevive a casa-de-pasto das irmãs Venceslau.
A Tabacaria Cruzense passa de pai para filho para neto.

Assim idênticos passam os anos sem relevo.
A estesia do sítio vai da mania de quem a sofra.
As lições de piano, deu-as a avó, deu-as a filha, dá-as a neta.
A variante da avenida nova nasce de uma demolição.
É a casa de azulejos-marinheiros a demolir.
Também ninguém a habitava desde antes do 25 já.
Ninguém se manifesta contra, sai cara a nostalgia.
Nem há como manter postal a electro-realidade.
Morrendo todos os originais, ficam os serviços.
Escusa de passar o carteiro, é outra a vi@.
Aguentam-se as netas Venceslau, vamos lá com calma.
O que safa a Cruzense é ser agência da Santa Casa.

405

Para iluminar qualquer pessoa estrangeira que me pedisse
a tirasse de obscuridade sua quanto a coisas portuguesas,
teria eu decerto de recorrer ao que, escrevendo, Cesário disse
em rimas perfeitas de qualquer defeito defesas.

Mais eu indicaria a tal pessoa, gentil ante pedinte,
Carlos Lopes, António Livramento, Eusébio, Joaquim Agostinho:
estrelas humildes que aos pobres doaram requinte
decerto heróico, campeoníssimo, dourado em pergaminho.

Levá-la-ia depois a uma sofisticada taberna,
dessas de chão de serradura & tonéis à vista.
Falar-lhe-ia da grei clássica & da moderna,
da Língua-Pátria lhe dizendo a formosura benquista.

Pouca ajuda pois lhe daria, acaso sou pouco utilitário.
McDonald’s & coisos também temos, mas não são ponto
que eu lhe apontasse por lusíada & originário.
Mas ah sim, Cesário sempre, que eu sou doido mas não tonto.

406

    O Sporting de Braga leva a Taça para casa. Jogou bem, fez pela vida, tem mérito. O meu Benfica não jogou bem – e foi roubado. Aquela expulsão extemporânea do guarda-redes não é aceitável, mais inaceitável ainda por haver vídeo-árbitro. Jogou quase toda a partida com dez. Não é desculpa – mas é atenuante. Não importa, para o ano há mais.
    
407

    Sim. Digo-me Sim quando já a luz do dia deu lugar ao vívido tule chamado noite. Reli linhas fortes escritas por alguém quando acabara de perder outro alguém. Refiro-me à perda definitiva chamada morte, não ao banal codilho ao voltarete. Senti a força daquele desespero tão bem escrito. Li-as pela vez-prima em 1983, no Verão. Ficaram-me. Reli-as algumas vezes entretanto. Hoje voltou a acontecer. São frases muito belas, brilham no escuro como as cocleares nebulosas dos firmamentos límpidos. São as páginas escritas por Silva Pinto a 20 de Julho & a 20 de Agosto (terça-feira & sexta-feira, respectivamente) de 1886. Na primeira data, a escrita aconteceu pouquíssimas horas depois do funeral que lhe levou o querido Amigo-mor da sua vida: Cesário Verde, poeta de que muitas vezes V. falei já. Ler esse posfácio de Silva Pinto incluso na edição original d’O Livro é, paradoxalmente, fortificante – ainda mais depois de uma derrota importante do meu Benfica. Quando alguém assina tão comovente lembrança, assimilo-lhe a força. Vale a pena ser obstinado na prática de ambas, digo: lembrança & escrita. Podem não propiciar modo-de-vida – mas são a vida de outro modo. Mesmo com tanta morte na rede de tal arrastão. Mesmo assim. Em vivos é que temos de vergar essa mola, não quando mortos – que é o sono para sempre, o dormir sem madrugadas canoras ao cabo. Sim, digo-me Sim. É uma bela palavra, um fresco monolito (*), perdão, monossílabo.

    (*) Não gosto de monólito. Aceito que o escrevam e digam, mas nisto prefiro ser monolítico, sou calhau de atirar por casa.



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