299 - IV
Terça-feira,
27 de Abril de 2021
Segunda quinta-feira de Junho, dia 12, ano 1975 d.C.
Lá nos vamos de novo a ela.
(No então próximo sábado, é o 17.º aniversário da morte do mui grande & mui amado Vasco Santana.)
Coimbra & demais topónimos-vivos do mundo comiam o pão que havia, respiravam o ar que não faltava, cumpriam a condenação a viver pelo delito pouco simples de haver nascido. Desastres rodoviários abundavam. Manifestações cívicas, havia-as também. Lucian’Alcoviteira era viva, tinha 45 anos, nem no Totobola gastava um tostão. Deixemos Etelvino ir descendo a Escada do Gato, vai decerto ao Dragão da Cremilde Larga, mas se calhar fica logo ali no Pinto – tinto é cheio, mesmo que seja branco.
Atendamos panos de ouro que o Sol estenda pelo chão.
Jardins privados bebem extaticamente quanta tanta luz.
Não, ainda não aniquilámos certo cinzentismo retro’de’gradante.
Sim, ainda a polícia se farda de cinzento.
Calma, ainda não somos uma Jugoslávia.
Austeridade & saneamento & alienação & expropriação & nacionalização são vocábulos recorrentes.
Fátima pouco muge, por enquanto.
Colarinhos grandes, gola-alta, calças à boca-de-sino, tacões à Deep Purple.
O bigode da I República é agora a barba-com-suíças à Che-Guevara.
O inventor-amador senhor Agnelo Gonçalves David, de Almeirim, quer aproveitar a energia das ondas do mar.
E o custo-de-vida? E a gasolina mais cara do mundo?
Tomai o lombo de porco a 149$80/kg!
Manifs contra a carestia mas também mocas em Rio Maior.
O Etelvino já mamou meia-litrada & duas pataniscas-de-bacalhau.
Já trouxeram o jornal à senhora-dona Luciana.
Interessam-lhe a necrologia & os cinemas.
Não a condeneis por não querer saber da Reform’Agrária.
O caso da batata-para-semente? É desalfandegá-la, senhores!
A Luciana recebe sopeirinhas beirãs, educa-as, dá-lhes 20% de cada coito.
É uma empregadora, afinal – gente-agente-económico, enfim.
Sovietizar as ruas ou manter informado o Carlucci?
Cooperativas & Comissões Liquidatárias dos ex-Grémios de Lavoura
ou
Associação Nacional dos Armazenistas Importadores e Exportadores de Frutos e Produtos Hortícolas?
O intermediário encarece a batata, clama-se.
A Cooperativa de Vagos anda chateada por causa da batata-de-semente désirée (a de qualidade-vermelha, por cromática ironia).
A Secretaria de Estado do Abastecimento e Preços deseja um 1976 melhor.
Do Vasco Gonçalves ao Pinheiro de Azevedo, é convulso o passo, tem tosse o pé.
A História do Pão valida as Migalhas.
Atiradas aos pombos ou negadas aos desvalidos, elas contam.
Cada amanhecer consagra no indivíduo alguma duração.
A terra não ascende ao céu: fixam-na as árvores.
Imitámos as árvores erigindo edifícios.
Tão capazes somos da catedral quão do bairro-de-lata.
Equívoca capacidade, essa nossa.
O Cosmos é para lá de grande, não oferece medida.
A vidinha é a vidinha: em 1975 como amanhã, se lá chegarmos.
Quem nunca viu passando um Etelvino?
Quem nunca o viu lustrando calcantes?
Quem jamais soube de uma Luciana?
Quem jamais a vilipendiou invejando-a?
Também a solidão do entendimento inebria, não só a benemérita aguardente dos mais clandestinos alambiques. Em um anónimo primeiro-andar de um prédio suburbano, no subúrbio da vida, mais restauro do que instauro. Sei coisas. Sei agora coisas. 1975 é no século passado. E, como Vós, estou/estamos ora nos últimos século & milénio passíveis de conter-nos – de contentar-nos, não.
Entrementes, passa o eléctrico para Santo António dos Olivais. Segue nele um leitor de David Mourão-Ferreira. chama-se Bersânio, estranha graça de gozão padrinho. Mas o que lê de momento é um exemplar do mesmo diário que, no Santa Cruz, Luciana passou já a um solícito cavalheiro que a reconhece mas a ninguém o revela, por dela cliente mais que uma vez já. Trepidando sobre carris, Bersânio vai lendo, pensando devagar em coisas que nunca nos dirá, retomando a leitura, no Hospital da Universidade acabou por morrer um rapaz de 20 anos chamado Sebastião, tinha sido colhido por um ligeiro em Pombal, acabou por não resistir. Mais fica a saber o senhor Bersânio, que aprecia Mourão-Ferreira & é ele próprio autografador de poemas (versando o Mondego, a Lua, a Brevidade-da-Vida, a Utopia-do-Amor-Feliz) que: Álvaro Cunhal no Pavilhão dos Olivais na noite do próximo dia 21; esta noite mesma, que é de folguedo em honra do bondoso Santo António, uma comissão de moradores da freguesia de Almedina leva a cabo no Pátio dos Castilhos o primeiro de uma série de arraiais em quadra de santos populares, a receita de tais “fogueiras” para investir na “restauração da escola primária que funciona em péssimas condições”; e, de elevado valor cívico, o que anteontem, feriado nacional do 10 de Junho, fizeram estudantes e professores: nada menos que “a abertura de uma estrada”. Contexto: por apelo governamental, o Dia de Camões foi transformado este ano em jornada de trabalho a favor da economia nacional. Infelizmente, não foi muito assinalável a adesão a tal apelo. Mesmo assim, em diversas empresas apareceram para trabalhar os seus profissionais: Auto-Industrial, Fábrica de Recauchutagem Lusa, Fábrica Santix (Coimbra) e, na Figueira da Foz, os trabalhadores da Fábrica Ministral. Em Soure, “magistrados e funcionários asseguraram o funcionamento” do Tribunal Judicial, fazendo-o em voluntariado.
Chegado a casa, ali tão perto do recinto da tradicional Feira do Espírito Santo, Bersânio recorta para o álbum o seguinte trecho:
“O contributo para a jornada que assume maior expressão revolucionária foi o que à mesma emprestaram umas duas centenas de estudantes e professores universitários que, arregaçando as mangas, pagaram, no alargamento de uma estrada em Póvoa da Lousã, o seu espontâneo imposto de trabalho braçal, imposto este que bem poderia tornar-se extensivo a todos os grupos sedentários, cujos contactos com o povo rural se traduziria em recíproca e saudável osmose de conhecimentos através das paredes pouco permeáveis que têm separado e oposto, por falta de compreensão e convívio, os trabalhadores intelectuais e mecânicos.”
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