© DA.
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Domingo,
2 de Maio de 2021
Fomos a um dos coliseus
ela & um dos meus eus.
Mui felizmente, o namoro abortou-se à nascença. Ela era doidinha da corneta – e eu nunca fui de porcas bem atarraxadas. O concerto daquela noite foi de boa qualidade, nada de sobrelotação, dava para ir ao bufete nas calmas, beber lá uma cerveja & trazer outras duas, tudo em copo plástico, claro, acho que é de lei. Ela foi de táxi para casa, deu-me boleia até à ferrogare, passei ali a noite, tinha passado uma carrinha daquelas que trazem de comer & cobertores aos desabrigados, encontrei um saco de papel com sumo de maçã, pão com marmelada & queijo triangular, aproveitei tudo, pareceu-me limpa a embalagem, não há que ter vergonha, comboio às 6 & ¼ da manhã, ala p’a Coimbra, que cidade não há mais linda.
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Na narrativa 315, inventei bem menos do que julgastes talvez. Fi-lo deliberadamente em tom leviano. Não leve. Não ligeiro. Leviano. É exemplo de como costumo compensar-me de más-horas. No fundo como à flor, é tarefa absurda – pois que, quando morto, toda a compensação é garantida.
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Guilherme Pardal, suicidário. Lembro-me tão bem dele. Conheci alguns de seus muitos lados – ou seja, de seus muitos eus. Materialmente, filho de mãe muito bonita & de pai muito trabalhador. Infância & puberdade, viveu-as mudando de casa & de cidade avonde, devido ao trabalho nómada do pai. Conheci-o quando ele veio para uma das faculdades da minha Cidade. Facto não-pouco espantoso, tinha carro próprio aos dezoito anos, o pai deu-lho logo que atingiu a idade & a habilitação legais. Cursou uma engenharia, mudou-se para matemática, depois desistiu de tudo. Passou a existir de noite apenas. Apanhava o comboio para a Figueira, andava de madrugada pela praia até raiar a alva, então comboio p'a Coimbra, que cidade não há mais linda. Não bebia de mais nem de menos. Não fumava só tabaco. Comia muito pouco. Amava mal, isto é: muito & depressa. Sabendo-me mais ou menos próximo dele, raparigas houve que tentaram nabopucarar-se dele à minha custa. Fui sempre evasivo, fechei-me em copas sempre. Fi-lo bem & bem fiz assim procedendo. Não já, não mais, jamais & nunca mais por aí, Guilherme. Parece que é de lei, como nos coliseus os copos plásticos – de vidro são as pessoas.
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A galeria de rostos, dinâmica na minha atenção, persiste em força. Recortam-se perfis em diversa gradação. Corresponde esta diversidade à intensidade da recorta, perdão, recordação.
O homem do pinhal que emoldura o velho hospital, por exemplo. Tinha o filho (único) hospitalizado. Não desandava das imediações. Não sei (mas sei) que lhe(s) aconteceu depois.
A mulher em frente ao Convento de Mafra, ansiosa por uma esmola qualquer a pretexto de nos mostrar alguma coisa da história monumental & da monumentalidade histórica daquele monstro. Sim, essa senhora a quem acabei esmolando, que vergonha a minha hoje ainda.
A galeria de rostos
etc.
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