07/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 320 (conclusão do dia 2) a 325 (toda segunda-feira, 3 de Maio de 2021)


320

    Inclemência do deserto, mesmo assim de inferior ferocidade à humana. Nela porém se vive & morre à semelhança exacta do que sucede nas regiões frondosas. Ao deserto geográfico corresponde (ele há casos) certa desolação interior que só a dita exterior iguala & compensa. A este propósito, ocorre-me a pintora Georgia O’Keeffe – mas posso errar o essencial por precipitar a analogia. Ela expressou, ela-mesma, a sua essência-mesma. Precisa de mim para exactamente nada. Assim, deserto daqui p’ra fora.

321

Segunda-feira,
3 de Maio de 2021

Todos os dias alguma insistência em algo
Todos os dias alguma abdicação de alguém
Em íntimo casulo se segrega & segreda
A vida corpo adentro é, da outra, diversa

Não melhor, não pior, tão-só diversa
Todos os dias algo quer dizer-nos algo ou alguém
Não é prestidigitação, não é ardil
É cada um à beira de si em alhures

Clara fotografia de câmara-escura provinda
Materialização da luz, um olhar a antecede
Ruidosa mudez, enfarpelada nudez
À medida que se nos revela

O mundo da sopa & da conta da luz
Não melhor, não pior, apenas necessário
Enquanto se nos não oblitera a necessidade
E com duas datas pensarão resumir-nos

Resumir-nos e até subsumir-nos
Por vaidade nos perdoamos a transigência
Rir sem dentes continua riso?
Quem não é mais vero-em-si na retrete?

322

Alfacentaur’-nos-emos quando nos calarmos de vez.
Neurónios sideral-cerebrais, diamantinas papoulas.
Aparecer ante Deus vestidos só de ceroulas.
Céu a mais para tão pouco corpo-terra, talvez.

323

Duas nuvens pequenas de sentinela ao azul.
Pouco duram, dissipam-se sem um ai.
Há moção de vento na tarde, grande despenteador.
Cirando por casa esburgando o tutano ao dia.
Estão em seus lugares os objectos essenciais
(incluo as minhas mãos no rol).
Um homem chamado Narciso percorre a praia.
Um outro, chamado Mouriz, limpa o pinhal.
Diamantino & Félix, irmãos, são sócios da serralharia.
Inclinam a cerviz os choupos azorragados pela ventania.
Lemos & Folha são sócios de contabilidade.
O par de nuvens de hoje recordou-me outro.
Figueira da Foz, 1972, no belo ponto de Portugal
em que o Mondego se atlantiza.
As duas nuvens, únicas, coroando o céu do jardim-parque.
Havia biblioteca-infantil no jardim-parque.
Tinha a forma de um livro, era bonita.
Brinquei ali muito, fui feliz sem reticências.
Hoje em dia, continuo feliz – mas é da fluoxetina
(incluo a posologia no rol).
São sócios de importação de café Rebelo & Brito.
Conheço-os, são gente séria, muito trabalhadora,
roubam o menos que podem.
Tomei muito whisky com eles no bar do Plácido.
Ainda eram vivos o Botelho & o Ribeiro & o Medeiros.
Ah! e o Leonardo Formosinho também, embora por pouco.
Nuvens, efémeras & eternas & de sentinela & bibliformes.

324

Trechos do pavimento conspurcadíssimos.
No baldio incendeiam pneus & colchões para diversão.
A degradação não conhece muros nem máximos.
Existir esterqueiramente pode ser até vocação.

Não digamos que houve aqui alguém que se enganou.
Digamos: Houve aqui alguém que enganou.
Digamos: Há ainda alguém que nos não engana já.
Lavada, a vida é boa; lixada, é má.

Refugiemo-nos, todavia, em fundamentado pensamento.
Não há já massa ou classe operárias, só desbaratadas baratas-tontas.
Cada um por si & contra o outro – assim é, lamento.
O hiperladrão sai impune, imune, sem prestar contas.

De nada disto ressuma qualquer novidade.
Ainda há zonas limpas, claras, arejadas.
Por elas andarilho em busca de pequenos-nadas.
Conheço por isso mui bem a minha Cidade.

Volveu-se-me insuportável (& até mortífera)
a indiferença à terra, ao ar, à hora, ao estudo.
Manhosa ignorância: freática, aquífera,
mina a hombridade, a sociedade, fode tudo.

Campeia por todo o lado, solene, o idiota.
Triunfa o solerte, o velhaco, o tenor finório.
Resulta afinal invariavelmente inglório
o judicioso, o sensato, o laborioso, o poliglota.

Não faz mal, enfim, haja tugúrio.
Pode ’inda ser que um trecho de rio
nos escolha em cristalino ramalhado murmúrio
– quanto aos tais vis, pois q’ vão à truta que lhes fugiu.

325

    Tem sido pelo lado da literatura. A eventualidade de ela-literatura atingir uma leitura – alimenta-a, deixa-a pastar em relativa paz. Sim, também se escreve para a gaveta – mas também a gaveta pode, eventualmente, aprender a ler. O Tempo joga com tudo. O redactor joga sozinho. O leitor joga sozinho. Em uma dimensão desértica, algum encontro não é impossível. Não me refiro a mágicas interacções – muito menos com autores fisicamente mortos. Refiro-me a algo ao mesmo tempo banal & único: o da compreensão.
    Cortázar está morto. Kafka, Proust, Woolf, Yourcenar – idem. E por aí. E no entanto.
    E no entanto a nota de despedida de suicídio de Virginia para o marido continua a franquear (algum) acesso à interioridade daquela senhora. Boné & óculos de Joyce, a própria cidade por onde Kafka processou o labirinto da psique (ou da ananke, talvez dê no mesmo), Yourcenar & seu pai, primeiro; Marguerite e a companheira, depois – a casa clara que (man)tiveram.
    Não foi pelo lado da religião. Não pelo misticismo. Não pela habilidade. Não pelo carreirismo videiro. Sim pela arte do contacto-possível, da partilha impensável, da identidade, da pobre esburacada rede atirada ao cardume das metáforas.
    Ainda sei pouco. E já não é muito o tempo. Vale-me todavia saber por que lado.


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Canzoada Assaltante