© Cristiano Cruz
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Sábado,
15 de Maio de 2021
Deixou obra forte o pintor Cristóvão de Figueiredo, lá do XVI português. Apreciei-o quando se nos acabava a todos a manhã do Sábado. Algumas telas dele foram-me, por assim dizer, legendadas pelo Vivaldi do Concerto para Fagote em Fá Maior, com Sergio Azzolini & L’Onda Armonica. Estamos portanto bem. Abençoa-nos a infinitude de recursos pró-Beleza. Com um pouco de justa-medida, a coisa vai.
Falta-me o primeiro dos dois volumes (Bertrand) de A Mocidade de Herculano, tese do então também moço Vitorino Nemésio. Tenho já porém – desde 9 do corrente – o meu velho Pierre Nordon biografando (em 1964, France) o meu velho Conan Doyle: graças ao meu Amigo Marco Fernandes.
Na hora seguinte (+ onze minutos), Die Kunst der Fugue (BWV 1080). Lá fora, dia baço – como gosto. Muita fuga possível, sim. Pelo menos aqui, posso escapar às alter(c)ações climáticas sem sentimento de compunção. Não darei por incompto o meu sábado. Em os refolhos de cada hora, (a)corro em meu adjutório mesmo, que mais gente me escasseia. Perdoe-se-me a tentação veleitária, que humana é por, precisamente, qualidade de seu defeito. Fazei Vós, enfim, são descaso do que V. peroro. Remedi(t)ar é-me preciso, julgo que no-lo é a todos. Bach, entretanto, em fuga (Holland Baroque met Judith Steenbrink, Filip Rekieć, Stefano Rossi, Tomasz Pokrzywiński, Tineke Steenbrink – 29 juni 2020 – Grote of Jacobijnerkerk te Leeuwarden). Não digais depois que V. não atirei convite. (clicar AQUI)
Fotografias de Walter Ballhause (Alemanha, 1911-1991) + LP em vinyl Further Temptations (1977, by The Drones). E assim se arriba um gajo à tala de sopa, dando já as 14h36m.
E depois de António José Saraiva, Eduardo Lourenço. Ambos Portugueses: o primeiro, 1917-1993; o segundo, 1923-2020. Ambos pensadores de alto-quilate, pensaram ambos Portugal. Há quem deles discorde não goste – etc. Não importa: deixaram Obra(s) cuja importância dá de si sem esforço. Têm sido ambos de meu bom proveito por este Maio, há muitos anos que mo vêm sendo. Escrevem muito bem, dominam cada assunto que abordam, pensam pela própria cabeça – fazendo pensar a de quem os leia. (Mesmo enquanto o gramofone cá de casa atira Get Our Way (by The Cynics, 1994.)
Outros instantes:
Salazar no caixão aberto, uma gaja a chorar-lhe em cima
Um plano fotográfico da English Bay, Vancouver, por Hendrik Slegtenhorst
Colecção de postais antigos (aspectos do Choupal)
Detalhe de Bordando, tela de Wladyslaw Czachirski (Polónia, 1850-1911)
De 1916, o auto-retrato de Cristiano Cruz (Portugal, 1892-1951)
(...)
O polaco Lewandowsky igualando o recorde de Gerd Müller (40 golos)
E então, entre as 16h50m & as 17h47m, uma sesta sem história, relatório ou novidade. Ouço a máquina falar das temperaturas extremas esperadas para o Verão: acima dos 40 graus várias vezes, é o que prevêem. Acaba-se a brandura, volta a impiedosa fornalha. E volta o meu ódio inútil ao calor excessivo. O sensato é ir curtindo, por ora, cada dia, que é temperado viver. De Wembley, o Leicester leva para casa a edição deste ano da FA Cup, vulgo Taça de Inglaterra (1-0) ao Chelsea. Sempre foi o meu jogo favorito de cada ano, mas antigamente. Já não é a mesma coisa. Ou antes: não sou eu já a mesma coisa. (Cf. a extraordinária final de 1979: Arsenal 3 – Manchester United 2.) E que eu saiba, até agora não houve confusão em Lisboa por causa do Benfica-Sporting. Até agora (21h47m) – mas tenho prestado atenção quási-zero ao assunto.
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Ronaldo Jaime Dionísio deixou a terra-de-todos-os-dias há onze anos.
Morava eu do lado oriental (?) desta Cidade, era Maio também.
Um arco-íris peculiarmente nítido arredondava o céu.
Deixou a família em bom aparato financeiro, o bom RJD.
Foi o Guilherme Alpha da loja de música a noticiar-me.
Era pelo fim da manhã de domingo, 16. Senti aquilo.
Quinze dias depois, iniciei o manuscrito de uma série diária
– um Ideário de Coimbra / Leite dos Santos, inédito ainda.
Da verdade (ou verosimilhança) disto, não hei mais que dizer.
Fica assim.
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Pessoa enfermiça, de valetudinário semblante, dada a tranquibérnias, mixórdias, burlas, falcatruas, trampolinices, trafulhices o mais multifárias – muito rico ficou, mas muito doente também. Morreu antes de perfazer cinquenta, o que o mostra, afinal, como pobre. Era de falar untuoso, de sílabas azeitadas – mas já não silaba, nem fala. Despertou, por tão abastado, a inveja de outros infelizes. É sempre assim. Já lá mora, já não é gente. A matéria de que era feito – refez-se em outras organizações que não a de humano formato. É sempre assim, também. Nem nome aqui lhe boto – por ele não merecer chegar a livro.
Lá vai o pegureiro-pastor-zagal
cuidar de seus vivos encosta acima.
Forte cinzento se vem adensando,
tiritará a choupana à chuva.
Este sim, este dos quatro versos supra, tem nome. É Albino Daniel Albertes Teixeira, 68 anos, dono de quarenta cabeças caprinas & de trinta ovelhas de fofa locomoção. Sozinho como a Lua, tal homem. Não se lhe conhece uma maledicência, uma malfeitoria, um vinagre, uma infecção. Fez os dois primeiros anos da Primária, que amou. Puseram-no logo pastor, tinha oito anos. Foi isto em 1961. Não se lhe conhece uma queixa, não é de lástimas nem de lágrimas ao espelho.
Casa de pedra velha ’inda robusta,
albergue derradeiro de Marília.
De sol a sol se foi volvendo adusta
esta mulher sem ontem nem família.
É casa sita a leste do povoado, tracto mais pedregoso do povoado. Farto vergel macieiro & pereiro a emoldura. Caminhos minerais levam & trazem bestas-de-tiro, o padre, bufarinheiros, flibusteiros – mas não Albino, que tentou Marília, que Marília rejeitou.
Acontece muito.
Não importa: de momento, aqui em casa, nem esperança, nem desespero. Em lugar deste & em vez daquela, atenção & aprendizagem. E tanto esta como aquela – sujeitas ambas ao anestésico esquecimento. Escorando o esquecimento, metafórica argamassa: rostos, idas ao cine-teatro, incipientes pulsões vagamente eróticas (de quando o corpo começou a não caber em si mesmo), primeiros livros lidos de prólogo a epílogo, certa deliciosa ânsia ante o mar. Sob a lona verde que protegia as cadeiras-de-armar para aluguer, a rapaziada brincava às fortalezas piratas, nessas ilhas-a-sul-de-norte-algum que lhes davam angra & refúgio. Em tal translúcida ocultação, roçava a euforia estar vivo. Nem dinheiro nem saúde tinham ou faziam qualquer sentido – prático ou qualquer outro. Lá vai. Também tal não importa.
Importa o trigo-limpo da palavra
ajustada ao gesto benemérito.
Assim sempre procedeu o Adérito,
mestre de sua leira & sua lavra.
Dou isto por puro de vero: Adérito Júlio Barco Campos, homem em cima de cuja hombridade se poderia empilhar pedregulhos castelãos com torres, ameias & tudo. Como Albino, solitário, firme, sem um dito ou um arremedo de que ameaça surdisse. Mas os anos tanto dão a vela como o fósforo. Adérito como um côto delas se apagou. Levaram-no para outra leira; mais estreita & mais restrita esta, como é de uso. Já a Grande Guerra tinha sido. Digo: a primeira das duas (muito) grandes que o século deu à História. Algures entre 1919 & 1938, aventarão com mediano acerto os mais informados. Sim, por ’í-algures-tempo.
Eu vim muito depois. Apesar disso, não peco por impureza de romanceador – são tão verdadeiros estes dados quão aqueles com que V. convenceis a aguentar vivos até pelo menos amanhã. Enquanto nativo desta Língua, tive de valer-me mercê de grossos alfarrábios-gramaticões para que a califasia se me volvesse atributo & marca-d’água. (Deu o que deu, deus meu.) Mas adiante, que para trás esguicha a mulher do burro. Passam-se os anos, estou de costas – isto não desfazendo – para a Nossa Senhora dos Remédio, peitando portanto o mar trovante daquele cabo. Longe, ainda o Muro-de-Berlim fervilhava de espiões & de famílias mutiladas. Li nessa época Carlos Fuentes & Helena Lisboa. Quando deveras anoso, o mais certo é recordar mais vezes esse inverno sem consolação nem lenidade. Convém-me, por conseguinte, dar daqui as de vila-diogo.
Em baixel que não singra nem aporta
Em só falar baixinho às senhoras
Em podendo é largas as vassouras
Ir levando o Senhor de porta em porta.
Ou então não. Em vez disso, conferenciar a sós no sentido do afamado juizinho, vulgo tininho também. Se (e é o caso, gente, é bem o caso) não se atinou na vida com o provimento logístico-material que a escora, então pelo menos saber o seu latinzinho, o seu Oliveira Martins, a sua gesta dos Descobrimentos, a sua pitada de Borges, o seu rapé de Calvino, a sua linha-ideal de hóquei-em-patins (Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho, Chana & Livramento), o seu trecho de Junqueiro para recitar nos piano-salões, o seu Bocage para fazer rir o putedo nas matinées do Coimbra Clube, a sua geografiazinha (capitais, rios, continentes, grandes exploradores, cores das bandeiras), a sua tolerânciazinha sempre que à baila venham cafrarias ou judiarias ou mourarias &/ou demais pungentes minorias, o seu Eça lapidar, o seu Camões protocolar, o seu Pessoa a-dar-a-dar, todos os reis de todas as dinastias menos os três filipinos cabrões, todos os presidentes republicanos menos o Thomaz, que este é para pôr no telhado com as outras abóboras, seu roteiro de melhores antros petisqueiro-beberrónicos, as árvores de melhor fruta como as que dão enfermeiras em época de paliativos, costureiras em tempo de agulhas, professoras em estação longe de casa, a sua, enfim, pachorrazinha para lançamentos de obras que infelizmente nunca são lançadas para muito, muito longe daqui.
Obras enfermiças, de valetudinárias capas
etc.
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