22/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 389 a 394

© W. Eugene Smith



389

Sexta-feira,
21 de Maio de 2021


    Dactilografando-os, reli os manuscritos de ontem.
    São ásperos e são francos – nem vírgula lhes retiro.
    Reiteradamente me fecho em repugnância ao politicamente-correcto.
    Acho certa Esguelha/Esquerda criminosamente responsável por muita merda hoje santificada. Muita merda.
    Siga.

390

    Salgueiro Maia & Diniz de Almeida são duas excepções portuguesas à imperial regra humana da mediocridade autofágica. São, são. Conforta-me saber-me Português quando eles se me impõem à lembrança. Eles dois & a Língua Portuguesa fazem-se-me de lareira ricamente acesa em serão de invernia. Por assim dizer. Não me peçam é lusofonias – tretas, bastam-me bem as minhas. E a tal Lusofonia é um pretexto merdoso para falar & escrever mal com a bênção dos idiotas-de-cátedra. É, é.
    Portugal? É a minha Casa. Outros chamarão o mesmo à sua. Fazem bem – por ser verdade. Nessa minha Casa-Língua, faço por aprender. Se fosse suíço, seria suíço. Birmânia, birmanês. Etc. Mas já agora, sou isto.
    E então, quando brinc’afagava a esfíngica majestática formosura em pêlo do senhor-meu-Gato, noticiam-me da minha terra a morte por cancro de um rapaz largos anos mais moço que eu, o Victor F., genro que foi do, também já-ido, Tonito de Jesus. É chatice melancólica, isto de se nascer na segunda metade de um século só para se morrer antes de acabada a primeira idem do seguinte. Cresce porém a novigeração deste: sã & louçã seja, que lhe pertence o alvor do milénio.
    Venha pois o novilúnio da conjunção
    Venha o plenilúnio da oposição
    Perigeu da proximidade se dê.
    Que se agitem as marés & as fêmeas.
    Cresçam minguantes na púrpur’anil.
    Dizei isso ao Victor, dizei tal ao Tonito.
    Ou a Salgueiro. Ou a Diniz.

391

    Não esqueçamos nunca que é a Max Brod & a Silva Pinto que devemos a sobrevivência física das Obras de Franz Kafka & Cesário Verde. Desobedecendo aos pedidos de última-hora que os escritores lhes fizeram (rasgar tudo, queimar tudo), legaram-nos tais obras-primas: em prosa a do senhor de Praga; em verso a do senhor de Lisboa. Não é dádiva pouca, caramba. Não a esqueçamos ou a tenhamos por menor.

392

    Rosa & Francisco, na casa que beirava o pinhal. Ali os dois, aprontando-se para a ida. Nascida antes, ela. Este era o seu segundo & derradeiro matrimónio, pois ficara viúva de Frederico muito nova, nem 25 anos perfizera sequer. São assim muitas vidas, ó Manuel-Maria.
    Cidália & Romeu, no pomar radioso, sulcado a meio pelo regato, ali onde começa o aqueduto de romano desenho. São ainda vivos estes dois, sei que sim, disse-mo Mafalda quando íamos de excursão a Aveiro. Gosto do que me disse.
    No meu tempo com Helena, fui com ela duas vezes à piscina de água-marinha do Grande Hotel. É-me escusado lamentar que isso haja sido (& desaparecido) há 38 anos já. Mas foi – e não volta. A Lena está bem casada com um mediador de seguros ali da Cruz de Morouços.
    A senhora Camila Agostinho teve banca no mercado. Passou-a à filha, que a partilha agora com a neta da mãe. Têm estas duas, à semelhança da velhota, freguesia certa. A rapariga teve casamento marcado, mas o fulano desdisse o dito, foi para o Luxemburgo com outra, que um eucalipto a desfolhar-se lhe nasça das beiças do cu.
    Conto estas passagens porque há sempre alguém que aprecia enredos simples, pode ser que tropecem nestes & estes sirvam de entretenimento inócuo. Como ouvir & ver o duo artístico britânico Gilbert & George, parceria criativa a cujas obras cheguei mercê de uma leitura que fiz de João Miguel Fernandes Jorge in As Escadas Não Têm Degraus, lá para finais dos anos 80/XX, acho.

393

    Uma álea de vivendas de beira-ribeira, além, com moldura de árvores frescas. Ali fez casa & montou vida Germano Porfírio Silvino Nascimento, pai de Marta & Rafael. Marta desde muito menina mostrou mãos-de-fada. Rafael desde muito menino sentiu curiosidade por tudo – mas por muito pouco tempo sempre. Depois Germano morreu, Marta & Rafael nem disso deram recado à mãe, senhora que tinha abandonado marido & filhos em prol de um camionista da carreira Bélgica-Holanda-Luxemburgo. Quando Eunice (a viúva contrariada, pois o divórcio nunca correra) soube, apareceu para reclamar partes. Os filhos combateram-na em tribunal, o processo arrastou-se por oito anos, ao cabo dos quais a megera ficou de mãos cheias de vento. O camionista há muito a pusera fora, ainda se temeu que ela por ali rondasse à espera de algum desfalecimento misericordioso dos filhos. Não aconteceu. Rumou ao Alentejo com outro camionista – e tudo quanto sei é mais não saber. Vejo de vez em quando Rafael, bebemos cerveja juntos. Marta, é raro vê-la. Faz costura para fora. Os manos vão-se dando.

394

    Colhe elementos esparsos, não foi costurado qualquer enredo até ora. A importância dos detalhes varia na confessa subjectividade do colector. Número de degraus de cada lanço. Onde empilhavam a lenha. A fofura do musgo rociado pelo Natal. As freiras-enfermeiras do hospício velho tomando sol no jardim, dez minutos de pausa entre malucos sem retorno. Vergastadas de chuva súbitas, o vento nas faias, a risada das raparigas através da infantaria pluvial. Lírios brancos no funeral da histérica cujos orgasmos eram espirros de água-benta. Colhe elementos, para que nada parar agora? O cheiro da terra a seguir à chuva, universal encanto desse perfume capaz de reter miligramas de Tempo na devastação. Fontanário de mármore com base de basalto, letras lavradas a cinzel & numeração romana. (Copiei a inscrição, não sei onde raio se me escondeu o papel – e tão-depressa não reverei tal bela cantaria.)



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Canzoada Assaltante