12/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 341 a 343


341

Terça-feira,
11 de Maio de 2021

    Paulo Carlos Franco Claro perorou no Café de Paris sobre aspectos das vida & obra do pintor Carlos Reis (1863-1940). Depois, ligaram de novo o televisor, dava um filme protagonizado por Oliver Reed (1938-1999). Posso estar a fazer confusão. Paulo Claro palestrou no sábado à tarde, o filme deve ter sido no domingo, à tarde também. Não importa. Foi um bom fim-de-semana. Clarinda veio, ficou com os Souza-Lares, julgo que partiu terça de manhã. Na segunda de manhã, fui à Bertrand e tive sorte: havia um volume que incluía o torrejano Carlos Reis, muito agradável edição, fui estreá-lo no Arcádia, era como hoje segunda-feira mas o século & o milénio não, o Tempo é danado. Foi no ano em que o trio de Bill Evans (+ Eddie Gómez & Marty Morrell) se deu a ouvir ao vivo no Oil Can Harry’s, ali em Vancouver, na Colúmbia Britânica. Esse ano é 1975 d.C.
    Há menos falsidade do que a desejável no que lembro, sim. Corro o risco de entreabrir janelas que podem desbragar-se como comportas em dia de ide-vos-com-deus-ite-missa-est. Pode que sejam coisas mortas – mas nada obsta a que delas escreva (ou nelas inscreva) lépidas lápides, por assim dizer. Tenho a memória encadernada em percalina, por assim dizer aussi.
    Outro sábado, outro ano do mesmo dito século passado. Era em Novembro. Benvindo Júlio Cosme Vilhena, apesar de encontradiças recorrentes monótonas imprecisões cronológicas, falou no Café de Londres sobre o fotógrafo Brassaï (1899-1984). O húngaro-franco tinha morrido no Julho anterior, quatro dias depois do nosso feriado-municipal. No domingo seguinte à palestra do professor Vilhena, fui ao cinema com Clarinda, passavam uma retrospectiva de Jacques Tati (1907-1982), foi maravilhoso, Tati é o maior. Ainda era viva Filomena D., sim, teve o desastre em ’86, morreu em ’97, isso não, nunca confundo.
    Clarinda, porém, continua a encontrar-me mais falsidade do que seria, foi sempre, desejável. Ora cá está uma comporta em perigo.

342

    Carácter da pessoa visada: com fendas já não calafetáveis. Em causa: persistente, sistémica, crónica malevolência para com os próprios filhos. Meço o que me dizem, mas não me arvoro em juiz de alheia causa. Sei que a dita pessoa não presta, que nunca foi grand’espingarda, se já em vida do cônjuge não era, nunca foi, como haveria de sê-lo agora etc. Isto sou eu fingindo conversar conVosco. Finjo porque estou só ante este papel. É remota a eventualidade de, sequer minimamente, V. ser de interesse qualquer coisa que àquele mau-carácter respeite & concirna.
    Ângulos de outra casa em sombra, alguma desta em verde.
    Rosais por essas encostas tão gráceis sempre ao sol total.
    Restam uns vagos sobrinhos avelhentados, tudo se esvai.
    Uma promissora rapariga acabou enredada em Alfragide.
    Nem vaga notícia dela hei há muito, no suceder de
    episódios sem relevo, sem pimenta, sem açúcar nem sal.
    A mãe da moça ainda é viva, desconheço se idem seu pai.
    O tio tinha uma farmácia rural, julgo que em Carnide,
    mas talvez mal julgue, sei pouco, neste deve & haver de
    contos sem fábula nem fantasia ou menor moral.
    Gostaria fosse minha tal casa, sobre que a chuva cai,
    parece, de intemporal maneira, meu Amigo David.

343

Na sala-de-espera da Segurança Social.
A senhora limpando devagar as lentes enquanto espera vez.
Grisalha natural, sem elixires nem lacas, a cabeleira.
Vestida de verde-pálido, sapatos brancos traindo nela a enfermeira antiga.

À esquina da Doutor Manuel Rodrigues com a Sofia.
Casal de muitos filhos com sacos de juta aos pés.
Envelhecidos precocemente, parece-me, olhar quebrado como vidros de ruínas.
Conheci-os a ambos quando estudávamos no Infanta.

Na Rua da Louça, um homem sentado no chão, cão ao lado.
Um pacote-litro de tinto-de-cozinha do outro lado.
Não pede, não se manifesta, não olha quem passa, não lê isto.
Não deve ter quarenta anos de nascido, pouco devo errar.

Casa-de-Oração a meio de uma ladeira abrupta:
“Prepara-te para te encontrares com o Senhor.”
Credo & cruzes-canhoto, dá-me tempo, tem lá calma.
Paredes da dita com ar de muitos domingos apodrecidos.

Em estabelecimento de retrosaria de interior azul-sabão.
Senhoras miudamente avaliando paninhos à mão bordados.
Rostos de quem não falha uma Rainha-Santa há cem anos.
Dedos pergaminhados, enxutos, de unhas muito duras.

No Largo da Feira, lá bem em cima.
Um irmão que tropeça, o irmão que o ampara a tempo.
Isto a um 23 de Maio, pela finimanhã: como em P.H. de Mello,
“há uma rosa na manhã agreste”.

No Real das Canas, século/milénio antes deste.
Maria Helena & Carlos Alberto, sábios decanos académicos.
(Ela bem mais do que ele, seja notado por vero.)
Mocidade inapanhável, reiteração dos fados clássicos.

Na Cervejaria da Fábrica, em dia 1.º de Maio.
Foi há mui poucos anos a Revolução de Salgueiro Maia.
Com António Manuel A., entre gente festiva.
Passagem do Kalinkas-115, o despudorado madeirense.

Ao alto da Sereia, uma semana antes do Natal.
Trechos do Rigoletto través o arvoredo antigo.
É porém tão nova a luz, que nem a sombra foi criad’ainda.
Flautins, tarolas, transparência total da recepção.

Na Rua Augusta, a casa alta emulando Paris.
Sumptuária da decadência, fantasmas simbolistas.
Boa para se ouvir Brel cantado por Scott Walker – e Ferré a capella.
Para se ler Nerval também – e Prévert, Céline, Vian.

Na Padre António Vieira, com M. Castro, o músico, copos no Skylab.
A namorada dele, Gina Porto Artur dos Remédios, poderosíssima.
No ano em que queimaram um dos carros alegóricos da Queima.
Ou no anterior, não hei como precisá-lo em segurança.

Ao cabo da de S. Paulo, com Jorge Alves, o das produções artísticas.
Fazia um frio rachão mas seco, suportável, não-fascista.
Canções de Raul Portela, de Belo Marques & de José Mário Branco.
Isso foi em programa-de-variedades, baile só na matinée dominical.

Em pleno Bota-Abaixo, viveiro & morredouro de existências manhosas.
Antes de pavimentarem aquele baldio, de oficializarem ali serviços.
Por ali Maria da Glória, florista, honrada, cabo-de-guerra, intimorata.
O que na Praça não vendia, ia dá-lo à Tutoria dos meninos.

No Beco do Romal sem guarda-chuva em plena intempérie.
Recolhem-se ao buraco as falas escurecidas pela lama da pobreza.
Come-se porém o belo quarto-de-bife no Paço do Conde.
Regressa de vez à Metrópole o major Proença de Vianna.

Morre um arlequim nas Almas de Freire – de coração partido.
Diz-se que era de família possidónia, mas de atávica cardiologia.
No pasquim local, só o rectângulo necrológico, explicação nenhuma.
Corre o ano em que cá vem o General H.D., para geral comoção.

Em qualquer partida, o mal é humano, o bem não é comum.
Se pudesses engarrafar a luz, engarrafá-la-ias visando fortuna.
No Choupal, ranchada de órfãos levados a passeio pelas freiras,
também estas órfãs – mas de outro Pai, esse que a tudo assiste borrifando-se.

No Palácio da Justiça, o velho elevador de grade, os painéis maravilhosos.
Quanto caso foi ali julgado por juízes ao serviço da fantochada?
A História de Portugal arregimentada ao serviço da Sacristia-Comba-Dão:
mas maravilhosa, maravilhosa, a arte de Jorge Colaço em 1933.

Na Império, merendando, Fernando & Cristina, antes da dúplice tragédia sua.
Na Sirius, Alberto & Isabel, casados havia nem um trimestre.
Na Marques, Nicolau & Lucinda, professores da Brotero.
Na Central, Jaime & Cidalina, empregados do Português do Atlântico.

Vista do céu local, a Cidade é mais ou menos a mesma.
Digo: enquanto caderneta, pois que os cromos variam muito.
Pálida embora, uma ideia pode fazer-se de onde nos achamos.
Mas não de onde nos perderemos, se o não estamos já.

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Canzoada Assaltante