21/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 378 a 388

© Gordon Parks


378

Quinta-feira,
20 de Maio de 2021

    Vi passando um engraçado: tipo marialva-galaró à Vitorino Salomé, com boina, bigodaça & coiso. Foi perto da Praça, devia (ele) ter vindo mironar o mulherio. Sentou-se na escada dos Correios a esfumaçar enrolados-à-mão. Esqueci-o depressa.
    Notícias de vários pontos afluindo à mesma foz: invasões migratórias, massas forçando a pseudointegração em sistemas ocidentais, instalando-se, desmantelando o anfitrião peça a peça, instaurando a superstição-oficial sua, guerra no horizonte-próximo. À esquerda do espectro-político, porém, tudo bem. É uma política suicidária. O chamado Terceiro-Mundo quis a independência soberana – e obteve-a por seu jus. Mas tal soberania é apenas administrativa, boa apenas para ter poltrona na ONU. Quanto ao povo local, continuam os caciques íncolas, de conluio com as multinacionais americano-europeias + China & Rússia & Israel, a esmifrar o tutano das riquezas naturais. O povo que se dane. Ou antes: o povo que vá danar os outros povos – na Europa, de preferência. Nem só o vírus-chinês da moda é praga. A miséria exportada à força também o é. Para mais, com a misoginia & a misantropia enroupadas de o meu-Deus-é-que-é-grande-o-teu-é-mentira.
    Non, je ne suis pas Charlie.
    Ide chamar pai a outro.
    Linchai os vossos caciques.
    Fodei-vos longe.

379

    Aceito o teatro como imitação do fingimento.
    Refiro-me ao drama do chamado Real.
    As regras permitem leitura de si, são dinâmicas.
    O pior de tudo é não-viver, não é morrer.
    Morrer é vulgar, até o imbecil consegue morrer.
    Quão difícil é todavia a simplificação.
    Uma pessoa não chegar a ser aldeia, por exemplo.
    Talvez um(a) de Vós entenda a linha anterior.
    (Caso não, mal faz nenhum.) (Mal nenhum mesmo.)
    Aceito o vosso teatro: imito-Vos a sobrevivência.

380

    A minha volta não é complicada, não por fora. Faço-a mormente a pé, seguro em território de rotina. Vou despindo & despedindo coisas excedentárias & perecidas. Não segurarás a onda com as mãos. Eu também não. É uma existência só mas é só uma existência. Sentir repugnância é ferramenta de autopreservação. Uma pessoa pode ter algo a dizer. Resta-lhe aprender a fazê-lo. Tem a vida por conta. Foi o que fez Eva Braun: disse de si com os filmes domésticos, olhamos por ela aqueles homens no terraço, aqueles homens prazenteiramente congeminando a morte-em-massa. A loura concubina é das mais eficazes fazedoras de poesia-épica: um Wagner de saias operando figuras-mudas. Dando a minha volta, aprecio estas lembranças vivas de quando nem de ser já nascido precisava. Além, à face da fonte, é muito bom ler devagar o óptimo Garrett. Ali não se ouve o teor brônquico do megafone-carro-sorteio-para-os-cegos. Ali não é bem-vindo o farsolas(-diz-que-sabe-tudo). De ti não dirão nem desdirão. Sim, a minha volta exterior é fácil.

381

Águas passadas.
E trapos ao vento.
Caras requeimadas.
Muito sofrimento.

Na cama me deito
que bem me desfiz.
Sê tu mais feliz
em teu mesmo leito.

Riscam andorinhas
firmamentos claros.
Os corvos, mais raros,
versos são, não linhas.

Bô-noute, Manel.
Ai adeus, Maria.
Adeus, Daniel.
Inté qualquer dia.

382

    A tentação existe, digo, a tentação de demolir pela razão própria a (des)ordem do mundo. Demolição alguma acontece, claro. Mas razão & tentação irmanam-se, motrizes forças ambas. Tenho evitado mal a ultraortodoxia de uma razão que, minha só, só a mim serve. Os pontos de contacto com quem não é meu corpo? Pelas aduaneiras do(s) costume(s). O dinheiro, em moedas só embora, propicia o entendimento universal à escala local. Nenhuma novidade nos alvoroça – nem a mim, nem aos fornecedores.
    Isto assim na corrente quinta-feira – indiferentemente, rapaziada, indiferentemente. O mesmo com o par Edite/Cristiano, há tantos anos residente na vivenda ali à curva do Campo. Não vou agora bater-lhes à porta, mostrar-lhes esta caligrafia, prometer-lhes alvíssaras se me lerem as toleimas, mostrar-lhes quão pretensamente melhor é ser livresco do que, vamos lá, descontar por & para a previdência. Não.
    Olhai: como papagueiam os filósofos-instantâneos de funeral, “isto da vida é tudo uma passagem”. (E não é que mintam – é só que repetem de outiva só, nem pensam no que se lhes bolça da boca.)

383

    Dia 8 de Novembro de 1939 (quarta-feira).
    A.H. discursa na Cervejaria Bürgerbräukeller, em Munique.
    Comemora-se o Putsch falhado de 1923.
    Às 21h30m explode a bomba-relógio, morrem oito acólitos do tirano.
    O filho de Alois & Klara saíra porém pouco antes.
    O atentado deve-se à corajosa solidão de um carpinteiro:
    Georg Elser.
    Assim reza o documentário História do Nazismo (The Abyss, por Egmont R. Koch).
    A tentação da razão a que me referi no 382 não é a de G. Elser.
    A deste é deveras heróica, não afim da minha.
    A deste é deveras racional, nada a ver com a minha.
    O solipsismo não é a bandeira dele, como da minha é.
    Ele fê-lo pelos outros.
    Eu nem por mim faço.
    Mas isto da História é tudo uma passagem.

384

    Um homem de cadeira-de-rodas mira da varanda o panorama: o amplo campo, a linha cuja cumeeira é o castelo, para lá deste o fértil infinito oceano. Em 1984, estava em França dando-lhe no duro. Nenhuma invalidez o tolhia então. O que então o tolheu, tolheu a França: o infame ignominioso revelador Affaire Grégory. A localidade onde mataram aquele menino – é a França toda. Este homem lembra-se de tudo com reavivado horror. O imbecil do petit-juge, os rastejantes parentes, os pais do menino – e o Menino.
    Este homem voltou para Portugal pouco depois do tenebroso caso. Voltou para recompor vida cá. Foi uma das vítimas sobreviventes daquela colisão de comboio com carrinha de trabalhadores que é hoje tão-só item de estatística sinistro-viária. Cadeira-de-rodas para sempre. Deu-lhe para estudar. Livralhada, internet, revistas por assinatura. Cultiva-se. Viaja sem sair de casa. De vez em quando, é certo, a família leva-o à face do mar. Comem peixe fresco & marisco quase-vivo na tenda do velho Serafim da Foz, é muito aprazível estar vivo & ser tragaz com modos entre familiares & amigos, por acontecer poucas vezes é que vale tanto quando acontece. Assim é.

385

Em pleno sonho o rapaz segue por aquela via.
Não posso fazê-lo ouvir-me: – Não vás, é mau por aí.
Tenho de continuar sendo esse rapaz surdo.
Tenho de ter ido sem retorno por ali.

Devo dizer-lhe adeus, desejar-lhe boa-sorte que não terá.
Devo despertar de relações cortadas cerce com ele.
O mais sensato seria não seguir sonhando-o.
A insensatez é todavia da essência mesma do sonhar.

A insensatez é todavia da essência mesma do viver.
Expectativa nenhuma, é por ali que há/é ido.
Não há som nem cores nos sonhos.
Ele há coisa mais triste do que um surdo a preto-e-branco?

Sim, há: um cego a preto-e-branco; a pequena-pessoa com leucemia-infantil.
Faltou àquele rapaz uma lucidez anti-luto, sair daquela vi(d)a.
Ninguém lhe perguntou se se importaria ou não de nascer.
Parece que o mesmo se não pergunta a quem quer que nasça.

386

Todos moram numa rua
A que chamam sempre sua”

(de Fado do Cacilheiro, de Carlos Dias / Paulo da Fonseca, popularizado por José Viana).

Assim já foi comigo. Isso passou, como tudo passa.

387

Fulanos com suas Sicranas vão hoje jantar a casa dos Beltranos.
Não há-de haver grande novidade em tal repasto de afins.
Todos se aborrecem muito, a começar por cada um consigo mesmo.
Nenhum está em fase ou situação de valorar encontro & conversação.
Alexandre O’Neill deixou dito que lhe repugnava não a vida mas a vidinha.
Passado pouco tempo de dizê-lo, morreu, deixou papéis pintados.
Fulanos, Sicranas, Beltrano & Beltrana fizeram-me recordar O’Neill.
Não é mau – a concurso, vêm também Sttau Monteiro & Ferreira de Castro.
O Sttau de Angústia para o Jantar & o F.C. de A Tempestade.
Talvez também o Fernando Namora de Domingo à Tarde.
O Vergílio Ferreira de Aparição. O Eça de Alves & C.ª.
A quem lá chega, a senilidade infantiliza, tudo se mescla.
Tremula a chama, a vela parece suspirar, já foi, tudo jantado.

388

    Fica-se aquém do partilhável mais, muito mais vezes do que se logra dar de si em ponte segura com alguém do lado oposto, alguém experimentado, que não trema, vacile & se encolha à primeira suposta incoerência. Como alguns que conseguem ler-se em pleno desespero – e depois tentam dizer onde estiveram, a que assistiram, o que trazem de lá & o que lá deixaram.
    Entrecortada semântica é a dos versos que demandam ser mais do que música. O que os coitados sofrem, Zé! Planando, vi há pouco planando, como ébria, a sóbria andorinha em o quanto azul podia então Coimbra. Ela é súbdita de si-só – e no entanto ei-no-la sujeita à esquálida literatura de um pré-sexagenário que mais não faz do que mirar andorinhas, domingos-perpétuos, como & quanto cresceu o gato amarelo dos vizinhos de baixo. E a quem dizê-lo além-andorinha?
    Uma região de lagos separados por taludes naturais, uma pouca casaria de guarda a eles, nenhuma capela. Também cemitério nenhum: quando alguém morre, vela-se, é depois levado à face do fundão, faz-se a devolução à terra através da água, durante algum tempo as ossadas brincam lá longe na vertical, delas fica algum tempo o nome que usaram & as datas que conseguiram.
    E na cave grande da grande casa? A lenha bem empilhada, ’inda recendendo a bosque renidente. As máquinas brancas, grandes também: de lavar roupa, de enxugá-la, a arca das carnes, a dos peixes, a dos verdes. Prateleiras com comestíveis secos, chás, cafés, cacaus. Outras com sabão, detergentes, tudo por estrear. A árvore-de-natal sintética, uma vez por ano sobe, uma vez ao ano desce. Sim, isto é de maior simplicidade dizível.



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