14/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 349 a 352

© DA.


349

Quinta-feira,
13 de Maio de 2021

    Tempo grisalho de pedras frias marcando azinhagas há muito inutilizadas. Ao fundo, em semicirco, a enseada (ou angra; ou calheta). A partir de Junho, o Sol volve-se ensífero: traz espadas que deveras ferem. Mas em Outubro o ensombro é gentil. Há muito menos gente. A neve vem no segundo meado de Novembro. Está-se preparado para ela, claro.

350

    É tão incoativo acordar quão adormecer, idem amanhecentardenoitecer. Mesmo só interior, a acção dá-se gás a si mesma. Por norma, a autonomia dos sonhos é acção-livre. Esqueço quase sempre os meus, talvez felizmente – mas enquanto sonho, assisto aos filmes com interesse. São películas (ultimamente, mais) que partilham com os achados arqueológicos o teor fragmentário. Sim, ultimamente mais. Tem também acontecido isto: leio-me escrevendo ao cabo de cada sequência fílmica (chamemo-lhes assim). Como um micro-relatório ou uma sinopse, um verbete, uma nótula, um incoativo de estância. A caligrafia é a minha, pelo menos – mas suspeito de mais alguém me guiar a mão do lápis. No sonho, não tenho mão-esquerda. Nesse momento em que escrevo, quero dizer. (Ominosa ponderação: a minha escrita vindo do & indo para o maneta.) Um trecho de que me lembro:
    Participo numa maratona a corta-mato. Fico feliz porque corro bem, nem pareço fumador veteraníssimo. Vou ali rapaz, ventilando maravilhosamente. Nenhuma fadiga, nenhuma ânsia – nem competição propriamente dita, antes convívio de enfileirada multidão dinâmica. É o que V. dizia com o vocábulo incoativo: que começa, dá início, põe em andamento, tira do marasmo. Toda a gente sabe que sonhar é incoercível. Não vejo magia nisso – o cérebro em repouso nunca repousa a cem-por-cento. Há sempre fiapos eléctricos chispando em tal central. Fascinante, sim; mágico, não – tudo é corpo, deixemo-nos de merdas, misticismos, carochinhas-cinderelas-peter-pans.
    Entidade & identidade próprias perdem nitidez, a opacidade esbate as cores, a sinestesia & o eidetismo ganham foros de percepção-mor – é giro. Em uma parede verde, emoldurado a tinta-de-ouro, um Sagrado-Coração-de-Jesus (sonho-me no México). Em um coreto de vila serrana, tarde de domingo, a filarmónica toda ela de crianças sábias, virtuosas, impossíveis. Redes metálicas, dessas de capoeira, em vez de lençóis. Panorama aéreo: piscina, estádio, rebanhos em vez de carros, crateras fundas como olhos vazados. (Sei que é Coimbra mas não é igual à dos postais de antigamente ou à dos drones de agora, é uma só minha, nem os tais rebanhos têm pastor, cão sequer, andam ali perdidos.)

351

    Depois de composto o 350, passei pelas brasas. Não muito: coisa de uma hora & um quarto. Sonhei. Mas atenção: os sonhos são para quem dorme, os projectos são para quem anda acordado. Eu digo sonho no sentido literal (pensamento-livre-cinema-independente & inimputável da pessoa inconsciente), não no sentido figurado (quimera, desejo, paixão, ideal, utopia).
    Entre as 4 & ½ & as 6 menos ¼ da tarde, libertei-me do mundo global, encasulando-me no meu. Merendado, agasalhado, autónomo, sem nada que dizer aos costumes nem lenço com que esmoncar ranhosos, pouco demorei a imergir em meu pélago mesmo. Foi uma boa sessão.
    Vi-me entre construções tortas, infinitas, erguidas de um chão que fumava miasmas de pântano. Não senti medo: aquilo era só feio & tristonho, não ameaçador nem suspeito. Escrevi: Sítio sem mapa. Era verdade: nenhum azimute era ali traçável. Talvez por causa da palavra mapa, pus-me sonhando com a escola-primária. Já não era a minha. Tinham queimado as carteiras no recreio – e riam-se do que faziam. Não sei quem. Não tinham cara, só buracos por onde se riam. Nada escrevi. Sonhei depois incisões bruscas: um comboio todo feito de caricas; um pano pintado à mão à mostra em montra poeirenta; a cara de Victor Hugo no fundo de uma tina com água; e cães, muitos cães, atravessando linhas de comboio com erva crescida mais de meio-metro.
    Acordando, ocorreu-me um projecto: escrever o 351 antes que me esquecesse de algo que já nem sei que era nem por que tinha sido.

352

    Fora de onirismos, vi planos continentes de homens irmanados pela pobreza. Têm quase sete décadas. É uma representação finamente concatenada. Como nos sonhos, são a preto-&-branco tais imagens. Filhas ambas da miséria, mocidade & velhice são ali irmãs-gémeas. O ano é 1954, esse em que nasceram (gémeos também) o Jorge & o Fernando. A história que vejo não é sobre estes dois. É a propósito de camponeses obrigados a alugar violência para exterminar a violência de que têm sido, regular & sistematicamente, vítimas. É bem mais retrato que caricatura; mais reprodução do que alegoria. E é mais assimilação vera que mero entretenimento.



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Canzoada Assaltante