13/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 344 a 348

© DA.


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    Na parte V da entrada 299, deixámos o jovem José lendo o jornal dessa Quinta-feira, 12 de Junho de 1975. Ao fim do dia de trabalho, levá-lo-á para casa, no bairro chamado Monte Formoso. É esse exemplar mesmo que encontro no chão, atirado, esquecido ou perdido por alguém. José já há muitos anos que não mora por aqui. Eu sim, para aqui vim há alguns anos, por aqui ambulo, durmo, escrevivo, colho coisas do chão mais que do céu. Com os meus olhos faço a leitura que foi de José. O jornal é O Século.

    «Bacalhoeiro português pasto das chamas na Noruega
    Assaltantes condenados (Lisboa)
    Rebentou-lhe uma granada nas mãos (Póvoa de Santa Iria)
    Seis membros da família Espírito Santo transferidos para a Polícia Judiciária
    Detidos por furtarem carteiras (Barreiro)
    Jornalista inglês agredido e roubado (Avenida da Liberdade, Lx.)
    Mortes súbitas (Amadora – de Cidália C.C., de 63 anos; de João S.A., 61; e de Idalina M.P.C., de 44)
    Atingido com dois tiros (Largo do Corpo Santo)
    Estudante afogado numa piscina (Figueira da Foz)
    Armeiro assaltado (Casa Russel, na Avenida da Igreja)
    Cadáver encontrado na ilha Deserta (Faro)
    Encontro de esperantistas (Casa das Beiras, Porto)»

    Repouso um pouco os olhos. Tiro os óculos, levo água fria à cara, apetece-me ervilhas guisadas com ovo escalfado, chouriço, chispe & toucinho-branco. O Zé já por aqui não mora. Mudou-se para a Bissaya Barreto, depois para a Carlos Seixas. O menino dele nascerá na Quarta-feira-2-de-Julho-de-1975. Cândida Leite, materAvó de José, completará 72 anos na véspera do nascimento do menino, José também. Ele, na Rua Cidade de Salamanca, eu noutra não muito longe em espaço – mas longe, a ponto de inalcançável, em tempo.

    «Vasco Gonçalves assiste à reunião dos Vinte e Quatro
    Camões, grande esquecido
    A situação em Angola apresenta-se estabilizada
    Um Timor-Leste indonésio
    Elementos do MRPP agridem estudantes e destroem material
    As habitações sumptuosas não têm razão de ser neste momento revolucionário
    Marcelo Caetano demitido da função pública»

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Quarta-feira,
12 de Maio de 2021

Vi hoje a fina arvéola debicando
o pão que lh’atirei cá da marquise.
É de molhado olhar que a vou mirando:
nada lhe falte em pão de que precise.
Sem culpa ou pecado, é só volante
inocência sem erro nem deslize.
Do vento-rio, montante & jusante
conhece em libertada soledade.
D’eterna efemeridade um instante
vale ela, qual o bosque & a cidade.

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Floresce na esplanada, encarnada,
uma humana papoila feminina.
Sei dela o ser casada (& ser Cristina,
mal-empregada) com Lopo d’Andrada.

Quem a vê ’ssim fumando distraída,
asinha percebê-la nunca logra.
Porém, tal vermelhidão é de cobra
vermelha, venenosa & fementida.

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    Sporting campeão nacional, ontem. Confusão multitudinário-policial nas ruas lisbonenses, de Alvalade ao Marquês. Faltam dois jogos para o fim do campeonato, mas a matemática pontual já faz rimar leões com campeões. A próxima jornada é na Luz – vai dar confusão cá fora, não é preciso ser bruxo. Os energúmenos da bola não representam os emblemas, personificam tão-só o vandalismo à solta. As claques (todas elas, excepção nenhuma) são a merda feita substantivo-colectivo. Fátima/Cova da Iria também recebe amanhã – é a festa-do-avante dos pastorinhos-miraculados. Viva Portugal!

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    Marta Violante Froes Vilaleste. Deve rondar os noventa, hoje em dia. Lúcida, resiste à tentação de borrifar-se para tudo & todos. Sentada no cadeirão branco estriado a veludo grená, tendo à esquerda a vidraça que emoldura o jardim.
    De vez em quando, alguma das mulheres do filho traz-lhe crianças a beijar, netas ou enteadas, nunca se sabe: “Os filhos das minhas filhas meus netos são, os dos meus filhos serão ou não.” Sábio povo.
    Gosta de acompanhar o canal que segue os crimes, dos mais hediondos aos quási-cómicos. E toma ainda o seu portinho pontual, digestivo, pós-prandial. Não tem a pior vida do mundo, tem só tempo a menos por ter tempo a mais.
    Irina Aurora Abade Costelo, co-residente do Lar onde Marta se ultima. Mais nova, não fez oitenta ainda – mas bem mais estragada: tromboses consecutivas em oito meses. (Não sei se ainda se diz “trombose”, agora é tudo por siglas & acrónimos, AVC, SIDA, BES, COVID etc. – mas foi uma trombose o que matou o meu materAvô aos 69 anos; o meu paterAvô, foi a tuberculose, aos 50.)
    Na ala dos homens, Joaquim da Encarnação Risca Alenquer, 78: José David Ramalho Herculano, 68; Henrique Miranda Costa Gaspar, 74; Emanuel Pedro Simão Lucas, 42 (vegetativo).
    Enfermeira-residente: Cândida Maria Zara Abreu, 31 anos.
    Administrativo: José Carlos Amaro Carvalho, 40.
    Senhoras-da-limpeza: Ivana & Chica, 29 & 31.
    Cozinheira: Fernanda, 42.
    Director: Dr. Serafim Ernesto Marques Belo, 66.
    Motorista & Faz-Tudo: Manuel Ventura, 50.
    Marte dorme mais de dia que de noite. De noite, pensa de mais.
    Nos dois homens que a fizeram, primeiro, viva; viúva, depois. Do primeiro, houve ela o único filho, Alexandre, hoje com 67, gordo, efeminado mas mulherengo, dissipador, pai nem ele sabe de quem – ou de quantos.
    Nos anos da Lisboa da ditadura, nas idas às queijadas de Sintra, os verões em Sesimbra, os natais em Celorico, todos esses anos em que deu por si bocejando como a Lua.
    Não chegará – isto de certeza – a 2042.
    E eu se calhar também não, que isto das tromboses é um repente que nos dá & nos tira.

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Canzoada Assaltante