09/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 328 a 333

© DA.


328

Quarta-feira,
5 de Maio de 2021

    Os copofónicos como eu sabem(os) bem quão bem sabe ler ou escutar a divina comparação que determina X como “igual ao litro”. Assim nos fosse a vida, que ao decilitro andamos – E já não é mau – rosnamos nós (amêndoa)amargamente…

329

Território & Língua enformam em Pátria uma pertença.
Não renego a pertença a que pertenço & que me pertence.
Abjuro, sim, da pançuda gravidade ponderosa do Comendador,
do obtuso pato-bravo a pífia pressa em mostrar o Mercedes novo.

330

Quinta-feira,
6 de Maio de 2021

    Deixei crescer a barba, assenta-me bem, é uma barba ígnea à Antero. É figura que aprecio mas não imito, plagio ou emulo. Terei para com ele tiques afins – mas gestos, não: e obra, muito menos.
    Ontem à noite, ceei papas de cereal com mel, fervi cevada, fumei à varanda dois cigarros, voltei ao cadeirão forrado a verde, acendi o quebra-luz de pé-alto, liguei a radiofonia, fui esparsamente escutando a peça de teatro-radiofónico. Deram depois um poema de um setecentista inglês, julgo que era Cristopher Smart, não anotei, falo de cor. (Se for Smart, faz no próximo dia 21 do corrente Maio 250 anos que, aos 49 de idade, morreu.) Depois, Scriabin.
    Estou sozinho na lembrança de noites repetidas. No mesmo cadeirão, à mesma luz alaranjada, folheando álbuns com grandes figuras do passado pré-cinema, fotografadas em vida & hoje engomadamente mortas. São rostos percucientes: defuntos sorrindo-me, em nítida revelação nítrica, epifanias de água-forte.
    Esta manhã lavei demoradamente as minhas colgaduras, digo, pendurezas. Estimo a higiene: a íntima física como a de falante/escrevente ao mundo. Volto pelo entardenoitecer ao cadeirão, na prateleira só bons (muito bons) volumes, nada-zero-népias de espertalhões como Paulo Coelho e/ou Dan Brown, que enfardam palha em formato-livro para que milhões de burros gozosamente os pastem julgando-se leitores. Aí está, mirabile dictu!, o nosso gigante Eça: “(…) uma camada de lixo impresso, o mais triste de todos os lixos.” (in Ecos de Paris, se quiserdes conferir).
    Tudo isto faz de conspecto. Deveras, baseio-me em riscanhadas anotações, não é minha já aquela d’antigamente fulguração de quartzo, por assim dizer. (Ou seja: barba ruiva nenhuma me torna arbustiva ou profética a queixada.) Nem me apetece ir por (mais, ainda) malsinações. O que escrevo não é rescrito, isto é, de régia ou pontifícia determinação com força de lei. Nem é útil: pelo menos, não útil mas pudorosamente escorraçado como o vaso-de-noite, vulgo bacio &/ou penico, de antanhos remo(r)tos. O que leio, miro & escuto, isso sim, é pragmaticamente útil: contamina de Beleza as horas que, minhas, deixam de ser (tão) sozinhas.
    Trata-se (mesmo & assaz) de não/d-existir. Ir aproveitando o dado, ir dando alguma coisa. Dando, quando mais não, barba cor-de-incêndio daquela mais engomadamente etc.

331

    Duas mulheres caminham pela plataforma da gare. Frescas como flores rociadas, apesar da longa distância que acabam de desfazer a bordo do transcontinental, uma de vermelho-acastanhado, a outra de azul-ferrete, ambas de botinas negras. O carregador traz-lhes a bagagem até junto da limusina que as espera. O chauffeur instala as senhoras, partem para as vivendas altas sitas onde outrora trepava ao céu o castelo do rei Geraldo.
    Faz uma caloraça emoliente, que elas rebatem com leques japoneses mui graciosos, daqueles com dragões aterrorizando espadachins de bambu. Hospedam-se, como há muito acertado por carta, em a mansão (o termo não é exagerado) do clã Relvas-Faianorte, essa famigerada tribo de tão bem-sucedidos importadores de tabaco, café, marfim, diamantes & divisas equívocas.
    A Cidade, aí a têm ambas a seus pés tão bem calçados. Opto por Vos não referir o ano, por uma vez não é importante. É ilusoriamente agora para sempre – e como nunca.

332

    Sem conventículos nem corrilhos, de individual sesso onde muito bem o quis ir assentando, Sigisbelo não deu pão a cantores de cantos, cancionistas de canções ou cançonetistas de cançonetas. Como os velhinhos mensuralistas & os antiguinhos menestréis, tocou enquanto cantou tão-só – e deveras exclusivamente – o que compôs. Não se deve dizer de sua obra o contrário. Boa, má, assim-assim, excelsa ou rele – é dele.
    Sigisbelo Fortunato Canha Carnete teve a fortuna de Fortunato: desprezou-o a idiotia da esguelha, perdão, da esquerda do politicamente-cu-recto; escosipou-o com imp(r)udência a abencerragem da direita-bebé-linha-de-cascais.
    Zurziu sem peias a afro-islamização da Europa (mormente da França & da Inglaterra, pela mesma via indo os até-ora sensatos nórdicos, que alegremente abrem as pernas a toda a escumalha fundamentalista. E até, Deus lhes perdoe, da Alemanha, esse viveiro de luminárias apocalípticas, com a excepção do kaiser Franz Beckenbauer).
    Os escritos de S.F.C.C. estão quase todos por juntar em tomo. Andam dispersos pela feérica internet – com gravíssimas profanações & seriíssimas trepanações de fixação de texto & vera autoria. Nada porém posso fazer: a viúva não (me) quer.

333

Variado mundo, multifário cosmorama.
Como matéria dele somos parte comum:
parte de participação; comum de comunhão.
Acaso & ocaso nos conjugam (& duplamente declinam).
Dilúculo & poente, aveludada luz, empecida lucidez.
Não sofro de oitocentista dispepsia, vocábulo então tão em voga.
Faço (como decerto fazeis também) por não derrear a mente.
Dementarmo-nos não me parece grand’escapatória.
À terrena vida, alambramo-la.
(Alambrar é vedar terreno a fiadas de arame.)
Abonde ou avonde = abundantemente, adv. modo.
Sassar é peneirar.
(E sesso é traseiro, peida, cu.)
E a ópera-bufa é cómica porque até o peido faz rir.
Dardeja, lampeja & relampeja, ó meu bom velho dicionário!
Em ti se define tudo – menos a condição humana mesma.
Adejar, bandeirar, sassaricar – verbais ventos bons.
    Tornámo-nos mero povaréu quando permitimos que, em lugar de povo, nos tornassem público, clientela, freguesia, consumidores.
    Politiquetes supostamente publícolas (= amigos do povo, como aquele pasquim beato) & baronetes financeiros da banca ladra – eles nos devoram a carne & nos esburgam o tutano.
    Não vejo como nos remirmos de tal merda.
    “Nada nos salva desta porra triste.” – diz-se que disse o grande Jorge de Sena (mas confesso não tê-lo comprovado em leitura de livro dele.)
    Palavreado muito, verbal cosmorama multifário-de-variedades: minha vida minha, que levo em frente, seja frente que retaguarda for.
Sótão tão só, tão-só.
Os Amados no cemi(s)tério.
O maluco motiva uma locomotiva.
Bonificar & tonificar, sicut licet.
Antes anisar que ansiar.
Solenes filhos-da-puta-mais-que-as-putas-suas-mães.
Estroina que usa boina.
Egresso & logo heresiarca.
Ó Grande Farófia!
Ide levar com a Fécula!
    Não V. darei, hermanos, qualquer sorriso diluente de falso.
    Ser-Vos-á estilete meu estilo - & rabo meu rabanete.
    Na paragem-bus, um agradável velhote tossica máscar’adentro. Deveras anoso, o cavalheiro: é de pilosidade arbustiva nas orelhas, tufando para fora como piaçabas de musgo.
Rubis de azevinho aos portais natalícios.
Fazer, do logos, legos.
Não blindeis o entendimento.
Não calafeteis a greta.
Não emparedeis o momento.
Não bloqueeis a maçaneta.
Não atravanqueis o ágio.
Não barriqueis o José Régio.
Não useis boné frígio.
Não entulheis o relógio.
Não seleis o refúgio.
Não entaipeis a gnosia.
Não encerreis a livraria.
Não empeçais a mercearia.
Não embargueis a poesia.
Não barreis a fatia.
Não enclausureis a maninha.
Não mureis a casinha.
Não laqueeis a veiazinha.
Não estucheis a avòzinha.
Não consolideis a priminha.
Não remateis a antessala.
Não vedeis a janela.
Não chumaceis a pila.
Não isoleis a escola.
Não estopeis a medula.
    Ao dízimo dos dias, átomo das noites, átimo da aurora, acafelar a má-lembrança – não se mas quando alguma.
Cosmorama multifário, mundo variado.
    Sabeis que fiz hoje? Estudei. Aviei papelada, arrumei mantimentos, enumerei nótulas, preveni a algia úrica com uma pastilha matinal porreira, brinquei com o Gato. Tudo senti – e sinto – passível de fixação caligráfica. Não por ter ou ser de importância – mas porque sim, porque estou vivo no tempo que me cabe (escre)viver. Não deixou o mundo de fazer entrar-me em casa alguma coisa de si-mundo. Dois amigos telefonaram-me, gostei muito, trocámos chalaças vis, deliciosamente obscenas, arrapazámo-nos, puerilizámo-nos, sim, gostei muito, gosto de rir & de fazer rir.
    Contei espingardas, também. Voltei a pensar na minha Tia Maria dos Santos. Nela & no tempo dela, a absoluta solidão a que foi votada por quem lhe era de sangue – ou de pus, no caso. Mereci a noite. Farei por palavrosa(palavra, rosa)mente merecer o dia.

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Canzoada Assaltante