18/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 366 a 370

© DA.



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Segunda-feira,
17 de Maio de 2021

    Um homem chamado Camilo Rato teve, esta finimanhã mesma, arte de imisção em o meu ideário. Já no corrente Parnada Idemuno uma vez (m)o fizera ele, mas sem profunda consequência (nem expressa nomeação). Lembrei-me dele (ou ele de mim) quando, no perfeito solipsismo que é o de toda a gente aquando na retrete, folheava páginas preciosas do precioso Almeida Garrett nosso, compendiadas estas pelo fiel servo das Belas-Letras que foi o senhor João de Castro Osório.
    Camilo Rato. Deve andar pelos 74, 75 anos. Tinha um filho a estudar na Universidade cá do sítio. Não era de cá. Era de uma Póvoa – de Varzim, como o Eça?; de Lanhoso, que foral houve d’El-Rei D. Dinis a 25 de Setembro de 2012? Questionar é preciso, responder nem sempre é possível. Não cheguei a conhecer-lhe o tal filho. Camilo falava-me dele com discreto orgulho. Certa noite, ajudei este senhor a subir um móvel-livreiro ao quarto que o filho arrendava ali à Couraça dos Apóstolos. O rapaz não estava. Fomos depois a refresco ao Café Santa Cruz. Conversámos. Era ele pessoa interessante & interessada. Não tinha o liceu (antigo) todo. Aos quinze, foi trabalhar de paquete num hotel do Porto. Teve (só) aquele filho de uma cozinheira da Ribeira daquela cidade. Estabeleceu-se depois como retalhista de panos em Aveiro. Foi pagando o filho. Chegada a hora universitária deste, sentiu-se feliz. Coimbra vivia já da esmola chamada nostalgia – mas formar-se nela ainda não deslustra seja quem for. Bom Camilo. Não sei que dele seja feito – espero tão-só que desfeito, não. Lembrou-se ele hoje de mim pela mediúnica literatura, que é o meu último reduto. E o dele também, agora que penso nisso.

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    Daquela vez, eram as Pezzi Sacri de Claudio Monteverdi, sim, na tarde maviosa de um sábado, como todos, sem-retorno: da Gloria ao Crucifixus, passando por Venite, Videte & Exsulta, Filia Sion & Salve Regina. A Lita era para ter vindo ao concerto comigo – mas o pai não deixou, suspeitava ele da minha pessoa finiadolescente. Hoje, que também filhas hei, não só o compreendo como o acho carregadinho de razão. Exsulta Pater, portanto & por assim dizer.

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    Houve aquele dia primeiro de Janeiro que me trouxe o par Audrey Hepburn /a Mulher-Flor, digo) & Rex Harrison. Foi há mais anos do que se me torna fácil crer. O que fazia de pai malandreco a cantar With a Little Bit of Luck. Grande produção, esse musical My Fair Lady. Audrey era belíssima, mas de uma beleza, por assim dizer, botânica. A de Sophia Loren, essa é (ainda é) toda carnação.
    O melhor desse Janeiro, sei-o agora como profeta do futuro-anterior, era ter toda a gente viva. E não só os meus – como também os amigos, as famílias de cada amigo, os cães no quintal, a oliveira, o cedro, o pastor Barbeiro, o Gago fadista, o Tónio polícia, o Leandro jardineir’ébrio, todos os Cucos. De pouco me serve soltar à perda tanto ai.
    E no entanto algo se inscreva em pedra
    Universal demanda de lembrança
    Esquecimento é cão que já não ladra
    Memória ilude mas sempre é pertença.
    Entretanto, o futuro era isto: cadeias de transmissão viral, judeus hitlerianizando palestinos, o vespeiro asiático imune a qualquer humanismo, a Rússia inçada de gorilas-albinos, a tropa em França implorando ao governo do miudito que não abra tanto as pernas a tanta escumalha fundamentalista & inassimilável – e por cá a cavacal múmia etc.
    E salvação disto? Ela haver, talvez haja. Aqui é que ela não mora. Nem com aquele bocadito de sorte da canção da bela Lady.

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Ao alto de um plano da Cidade, lá onde árvores vicejam
Passeando a própria roupa ao deus-não-dará das horas
Lá tornado aqui, sítio de versos que bocejam
De esperanças rotas, moucas fés & vãs demoras.

Por ’í uma pessoa pode anonimar-se sem família
Sem crédito fiado de quaisquer instituições
Vender ao desbarato os tarecos da magra mobília
Mijar na Sá da Bandeira perto do leão do Camões.

Própria da rés-pequenez é a mania-das-grandezas
Mais assisado é o tolo que ri das próprias toleimas
Aqui a estudantada estuda nada mas gosta mui das queimas
Ide ter co’ papá, peçam à mamã: ou ide servir às mesas.

Escrevo o meu ideário quanta vez nocturnamente
Não vou por trinta lentilhas alugar-me ao diabo
Ele há tão poucas pessoas, que o mais é gente
Caprina de pés & com cara de rabo.

À sépia-luz do candeeiro, sitiado de papel
Recordo menos que invento em alento de verdade
’inda outro dia, na mercearia, a senhora: - Sô Daniel,
custam-lhe as nêsperas o dobro se levar só metade.

(E eu com nêsperas à borla: ao pé da minha cunhada
Há nespereira fartinha junta a ’ma casa abandonada.)

Ao alto
Etc.

370

    De novo se fez nova a noite antiga
    Antiga lição é a da luz ausente
    Ela é antes & depois de sermos gente
    É espanto que ainda se vá na cantiga
    De uma além-vida em mel d’eternidade
    E o mal da morte afinal não ser verdade.
    Eram menos burros os politeístas: dispondo de vários deuses, tinham sempre alternativa funcional quando algum destes se avariava ou caducava – ou quando, tão humanamente aliás, morria e, por começar a feder, era enterrado & esquecido até mais não ver.
    Maio, segunda metade em curso.
    Siga.

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