28/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 411 & 412

© DA.


411

Quarta-feira,
26 de Maio de 2021

    Embalsamada em papel-de-seda, viva porém, uma trança da minha bisavó (não sei já se do lado-mater se do -pater) havia no roupeiro dos meus Velhotes. Sonhei-a ontem durante um assomo de febre que a recente vacina me instalou sem perigo mor. Recordei-a, viva deveras, naquele segredo mnemónico. Nem em criança me angustiou tal fragmento de uma senhora que só assim posso recordar, pois que não convivi com ela, tardio de mais me deram o nascimento. Meio-sonho com meio-delírio, a condição era ideal para dormir-acordado naquele quarto, o de Pai & Mãe. Despertei, afinal vivo, já a luz era alta. A febre esvaíra-se, a vontade de viver ainda em mim trabalhava – e trabalha. A epifania da trança viva não me assombra. Era, talvez, uma pièce-de-resistance contra a autoridade do perecimento total.
    Como disse, despertei em vida, pronto para as maravilhosas aventuras que são o sal & a pimenta do quotidiano dos órfãos. O pouco a tratar, por tratado o dei. Com um duche de água quente atraí à armadilha qualquer remanência febril, expulsando-a de vez com viril chuveirada fria. Pude então desjejuar-me a preceito enquanto mirava da marquise o ofício da luz no panorama totalitário desta partida do mundo. A coisa foi compondo-se. Não sei se a noite trará ou não consigo alguma revivescência metabólica de anticorpos inquietos. Alinhavar sintaxe é já de si funcional, subsidia o viver em conformidade com cada desafio.
    Visito hoje o meu Irmão doente, lá onde ele resiste como pode à força da duração. Faz hoje 35 anos, sepultámos outro Irmão, parece muito tempo mas é na verdade um ontem-contínuo. Também por isto me não é tão difícil a relativização das supostas importâncias & urgências da vida quotidiana. A literatura sempre repara & escora algumas frinchas no paredão do Tempo.
    Terror & sobrenatural entretêm-me a espera: um filme fácil, no fim a mulher é punida – mas a narrativa fica aberta, o mal arranja sempre maneira de furar, é como a água. Perto das três da tarde, não nego que a sesta me conviria – mas não posso fazê-la hoje por causa da dita visita ao Mano. Não é uma obrigação, não é nada de heróico, épico, ou pelo avesso pícaro, lingrinhas. É tão-só sangue-do-mesmo fluindo em contemporaneidade presencial, não menos nem mais. Não sabe a minha esquerda o que a direita dá – como esta não sabe o que aquela recebe. (Sim, está correcto isto.)

412

Vi o rosto do meu Irmão espelhado na trança
da nossa Bisavó: idêntica a semblante compostura.
Isto do sangue é tudo baile, é tudo dança,
é alegria tudo, é tudo siso, tudo loucura.

Não posso valer-lhe uma migalha pragmática.
Esqueci-me de ser médico, messias-salvador.
Pouco conta agora o ser ático, o ter gramática.
Isto é aquém-da-vida, aquém-do-amor.

A minha escolha é voltar para a semana.
Vê-lo é fazer deste lápis n.º 3 (da Viarco)
o exacto telefonema que me fez perder o barco,
recolher à pensão & à seita tão profana.

(Ilegíveis, os trechos seguintes deixam de contar para qualquer d/efeito.)







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Canzoada Assaltante