© Kurt Hielscher
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Sexta-feira,
30 de Abril de 2021
Fabiano Runa é como me chamo hoje, sátiro decrépito que à lucarna mira as meninas sexagenárias tão apetitosas, tão suculentas & tão indiferentes a ele-mim.
Quisera ser tão-só carteiro, isto é, arauto de versos pelo pneumático parisiense trasladado a coimbrão sistema.
Cartomante nenhuma me adivinhará o passado. Por que o quereria ela sequer vislumbrá-lo?
Sou Baganha d’Ávila, o miserável corruptor de liceais? Não serei.
Sou Penha Barão, sevandija, tiranete, canalhete, valdevinos, rixoso & estoura-vergas? Decerto sim – ou só talvez, mas em outra vida, outro livro.
Poderei eu assinar como Riofrio Galiano, perpetrador de sonetos, desflorador de rosais, punheteador de marujos de licença em terra? Para quê?
Quereis-me Vós Madi-Pipi-Parvalegre, o de gratos olhos liquefeitos tal os do mendigo bem obolado?
Não me apetece hoje configurar-me em Crespo de Bustos, o exegeta da obra regiana, digo, o erudito fascinando por José Maria dos Reis Pereira (1901-1969), coleccionador de crucifixos & sisudo professor de Português-Francês.
Ó nublado Cavaleiro
Ó Conde de Velha-Ponte
Ó Auras do Horizonte
Dai-me pão, se não dinheiro!
(Foi enquanto Napocato Craveiro que compus a exclamativa quadra imediatamente supra.)
Aqui onde sou mero Daniel & moro, qualquer ventania mais forte dá de si longo verso-uivo. Eu cá gosto. Gosto de ventania, de invernia & de poesia – da Maria, já não.
O escolar Poejo Bruma usou os meus olhos (& respectivos óculos graduado-progressivos) para ler a dinamarquesa Karen Blixen, primo Isak Dinesen. Eu uso o nome dele porque-sim.
Bilro Condalepre, actor, panilas, comuna, hipocondríaco – um santo, enfim? Sim.
Brandevale Petreponte, ninguém? Sobretudo.
Em um Real modelar, é-se alguém quando em cotejo para com homens como Salgueiro Maia, Melo Antunes? Talvez um pouco – mas pouco.
Fabiano Runa, por-hoj’-enquanto.
Vejo-me adormecendo-o.
Adormeço-me-o.
Jorge Lucas & Luís Moreira disseram-nos aspectos tido em conta por eles nas viagens que fizeram, tantos as que fizeram juntos, quanto as que, separados. – Foi uma sessão preciosa – relembra & resume Fabiano, dormindo. – Concordo – confessa Runa, virando-se na cama.
E lá vai passando,
além-lucarna,
a preciosa menina encanecida,
fugaz fugitiva flor da minha vida.
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Pela finitarde, o corpo deu-se-me a essa forma de autocomplacência chamada saciedade. A hora pareceu-me inúmera: os ponteiros quedaram-se na brandura. Sabido, não dei luta ao torpor. A máquina-de-imagens imaginara, desliguei-a. O fogão cozinhara, apaguei-o. A lucarna ilumin’arejara, cerrei-a. Adormeci sem saber ler nem escrever nem contar. Mas conto:
Um certo André Esteves, motorista rodoviário de quem sou amigo há uns trinta anos, esbracejava mimossinaléticas em frente ao Café Silvano, esse mesmo estabelecimento em que tantos anos trabalhou o Ângelo da Adémia, que era guarda-redes e usava calções cor-de-laranja. Era comigo, a bandeirante gestualidade do Esteves – que me despachasse, que hoje era dia de irmos até Gouveia. A viatura, enorme, de escadórios entre pisos, de um luxo sátrapa, capaz de milhares de milhas sem estazar (estafar, cansar, fatigar, esfalfar, exaurir, chupar das ventas o bafo a) o viajante. Partimos, ele & eu sós naquela nave toda. Por um comunicador-vídeo incrustado na carroçaria (como aquele do 2001 Odisseia no Espaço que o doutor usa para falar do infinito para casa), o meu irmão Fredo diz-me de repente que não pode estar em Gouveia à minha espera, está em Sintra, conheceu uma brasileira pela internet, tem a certeza de ser finalmente o Amor. Naturalmente, fico fulo com tanta ingenuidade, mais agora, na nossa idade, e logo com brasileiras, credo et nego. A nossa mãe sai da cova, dá-me uma nota de mil escudos, diz-me que volte para tratar do meu pai, que “anda triste como a noite”, palavras dela sacadas de empréstimo ao adagiário popular. Some-se sem mais, como toda a gente sabe & todo o órfão conhece. O motorista roda 180 graus a cabeça (como faz a miúda endemoninhada nO Exorcista), mas não é para meter-me medo, é para eu perceber que o André Esteves se chama agora Fabiano Runa, nome que já li em qualquer lado: até porque, de novo desperto, volto a saber ler. Quanto a escrever & a contar, talvez não tanto assim.
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