© DA.
300
Quarta-feira,
28 de Abril de 2021
Um dos sonhos da sesta deu corpo à pessoa de olhos claros.
Os olhos eram sim os mesmos, mas a pessoa era fraude.
A pessoa da recordação não coincidia com a do sonho.
Os olhos sim, era indubitável, os olhos mesmos.
Foram quatro, os sonhos autónomos de uma sesta só.
O segundo sonho foi bélico, a barafunda fê-lo suar copiosamente.
Confusão & fusão de boers, crimeias, borodinos, bussacos, guernicas.
Leões & pombas, cegonhas & enfermeiras, pólvora & sífilis.
E águias-correio, o pai fardado, anémonas nucleares, muito pó.
O terceiro & o quarto sonhos pulverizaram-se ao despertar.
Reteve tão-só serem dois distintos, autónomos, irrisórios.
Passava já das quatro & ½ da tarde.
Desperta para uma realidade ventosa, opressa.
Hedonismo & estoicismo aqui não pesam.
Antes linhas de tinta preta em papel branco:
versos ou zebras?
Inventa mistérios sem aviso-de-recepção.
Pragas, incêndios, visões, presenças inomináveis.
Certa invencibilidade do ódio, não tanto do amor.
Medusa como água volvida organismo natatório.
Cada século padece de orfandade pelo seu precedente.
Como com a Blixen:
“Temos de trabalhar, um dia de cada vez, sem esperança nem desespero.”
É Judith Thurman, biógrafo de Karen Blixen / Isak Dinesen, quem na TV cita a intrépida Dinamarquesa.
Por mim, alinho há muito anos no lema da (grande) Autora de Contos de Inverno etc. Já o escrevi bem mais que uma vez. Amanhã? É uma amnésia proactiva: ainda ninguém se lembrou do que há-de ser – e também do que há-de não-ser, como sonhar que se fez a festa, perdão, a sesta.
301
Reencontrei-me em fala-ao-vivo-&-em-pessoa com o meu ilustre, querido & máximo Amigo C. Ferrão. Foi num destes domingos. Havia ainda confinament’obrigatório a partir das 13h00m. Aproveitámos, pois, a finimanhã. Falámos do que falam os velhos: de doenças, de videirinhos, da família. Estranhamente, a literatura não apareceu muito & o futebol quase nem deu de si. Tomámos (bom) café em um estabelecimento sito num bairro de médias-altas posses. Vê-se por ali quase tantos BMW & quase tantos Mercedes quanto nos bairros de predominância cigana. Já frequentei mais, em treinada & apurada solidão, aquele comércio. Doces & salgados são ali de altíssimo quilate. Não é sítio para aguardentar-me a cavalgadura beberrona, antes sim para espesso café-com-leite & crepitosa empada à escolha: de galinha, de pato, de peixe, de marisco, de sabe-deus.
O meu Amigo ainda tem Mãe viva. Cuida dela como & quanto pode, decerto não quanto & como quereria. Agora que andamos todos atrelados a telefones portáteis, portátil é a ânsia em que se anda, a de a geringonça tocar para nos travar o passo & nos estilhaçar o coração. O C. Ferrão & eu já partilhamos muita ração com sabor a póstuma. Todavia, fomos moços já. 1-23 é quanto é quanto separa os nossos nascimentos: ele nasceu antes de mim precisamente 1(ano)-23(dias). Temos os sessentas à porta – se ainda cá estivermos para abri-la. (Abri-l) a, ele; eu, mai(o)’s ódespois o tal ano co’s tais vint’&três dias.
Rever-nos-emos & reescrever-nos-emos em breve, oxalá. Sem esperança nem desespero, como há pouco V. aventei.
302
Um cavalheiro deu por concluído o expediente, fechou à chave as quatro gavetas da secretária (antiga, pesada, sólida, magnífica), vestiu o casaco, serviu-se de uma dose de brandy, vestiu o sobretudo, despediu-se da recepcionista no átrio da torre de escritórios, saiu para o gélido lusco-fusco que sitiara já a grande metrópole.
A idênticos ponteiros, uma senhora deu-se por satisfeita com o estado da derradeira arrumação das coisas daquele dia, decidiu não telefonar para casa, meteu na boca meia-tabuinha de chocolate-branco, vestiu a canadiana, sorriu sem palavra ao porteiro, saiu para o frígido entardenoitecer que sequestrara já a ingente urbe.
No cubículo da associação de estudantes, um segundanista, martirizado sem clemência pelo acne mais vulcânico, curte em solidão o disco que roda no prato, talvez Iggy Pop, fumando Benson & Hedges como se diz que fuma o Bob Dylan.
Na proximidade do viaduto ferroviário, um polícia complacente gesticula xô-xôs a um par de rapazelhos que ele sabe traficantes daquilo-para-rir, optando a dita parelha por desandar dali sem pressa nem demora.
Pouco falta para as vinte, já a noite se vestiu com quanto trapo tem no roupeiro sideral, já se vai passando do bar de aperitivos para a casa-de-pasto, não é outono já, já mais inverno semelha, os anorécticos lampiões públicos dimanam uma aura bulímica, acostado ao embarcadouro o Gloire-Dieu recebe os últimos passageiros transfluviais.
Do amanhã se diz ser outro dia.
Até prova em contrário, sim, talvez.
303
Não acaba quem amamos enquanto amamos:
a nossa morte os mata, só então sim.
Então só, idos já nós, têm eles fim:
assim afins amemos ’quanto vivamos.
304
Materiais de para/ construção:
Homem parado, de pé, em margem de rio.
Não roda a cabeça, não sai do lugar.
De pálpebras cerradas, respiração mínima .
Aos pés, uma trouxa com roupa, pão, bíblia, água engarrafada.
Nota-se ser em Portugal pelas sílabas que as árvores libertam dando-lhes de través o vento.
Carrinha de caix’-aberta, frente verde, carregada de lenha, ferramentas, jerricãs, cordas, um berço azul com flores brancas pintadas nas grades, uma grade de cervejas de litro. Senhora-de-Fátima fluorescente enforcada do espelho-retrovisor. Dormindo no lugar-do-morto, uma menina. Ninguém ao volante – mas a viagem prossegue, segura.
Lata de tinta-permanente, resma de pergaminho, mãos à janela, olhar sabe-se-lá-onde.
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